‘Nós não morreremos’, diz cineasta taubateano Jeferson De, diretor e roteirista de ‘Doutor Gama’

Diretor e roteirista de Taubaté, Jeferson De lança ‘Doutor Gama’, seu quinto filme que conta a vida do jornalista, escritor e advogado Luiz Gama

FONTEPor Xandu Alves, da Ovale
Cinema. O diretor Jeferson De, que é de Taubaté; na espera pela indicação ao Oscar (Foto: Vantoen Pereira/Divulgação)

Torcedor apaixonado do Burro da Central e do Corinthians e especialista em pipoca doce, o cineasta Jeferson De, nascido em Taubaté e um dos mais premiados do país na atualidade, mantém o bom humor mesmo diante dos ataques à cultura no atual governo Bolsonaro, do racismo estrutural e da violência.

“Tudo isso vai passar. Não vão calar os artistas”, disse ele em entrevista exclusiva a OVALE.

De lançou há pouco mais de um mês ‘Doutor Gama’, após seis anos de trabalho no seu quinto longa-metragem que conta a vida do jornalista, escritor e advogado Luiz Gama (1830-1882), patrono da abolição da escravidão do Brasil. “Extremamente necessário em nossos dias”.

Confira a entrevista na íntegra.

 O que o levou a fazer Doutor Gama?

Sendo bem sincero, foi a minha ignorância sobre quem era Luiz Gama. Lembro-me da história na primeira vez que o roteiro chegou para mim, mas não conhecia esse homem tão importante na nossa história. Quando a gente fala sobre abolição da escravatura a gente lembra imediatamente da Princesa Isabel. É assim que aprendemos na escola, que a abolição é um ato do Estado brasileiro, numa bondade da princesa. Quando li a história de Luiz Gama, tudo ganha um novo significado.

A história de Luiz Gama é essa vida dedicada a libertar a si próprio, que foi vendido garoto pelo próprio pai, e tentar libertar outras pessoas negras, e negros africanos. É um homem não só importante para o Brasil, mas para o mundo. Então, foi a minha ignorância que me levou a querer conhecer mais e a fazer um filme para que todo mundo soubesse o que eu sabia.

 Como está a recepção ao filme?

Estou muito feliz. Faz um pouco mais de um mês que o filme estreou nos cinemas e posteriormente está no streaming, no Globo Play. Muitas pessoas no Brasil inteiro têm visto o filme e se emocionado. É algo novo para mim. Temos feito muitas lives para falar do filme e debater Luiz Gama, com vários especialistas. O filme tem tido muita aprovação, até a crítica cinematográfica, não estou muito acostumado. Muitos textos interessantes aprofundando questões do filme.

Há duas semanas recebi a novidade de que o filme foi selecionado para o American Black Film Festival, que é tão importante que credencia quem ganha essa festival a se inscrever no Oscar e ao Bafta, que é o Oscar do cinema inglês. Não caiu muito a ficha ainda. Eles selecionaram 10 filmes, sendo oito dos Estados Unidos, um da África do Sul e o nosso Doutor Gama.

É muito importante nesse momento que o Oscar está discutindo tanto a questão da diversidade e temos visto cada vez mais filmes onde as pessoas negras, como eu, estão protagonizando e dirigindo. Muito bom ter o Brasil inserido nessa discussão. O mais importante é as pessoas conhecerem Luiz Gama.

 Foi seu primeiro trabalho de época?

Foi sim. Um filme de época é sempre caro. Já tinha carruagens na época, tem o figurino da época. Filmamos em Paraty, Cunha, Bananal. O filme tem um resgate histórico importante e isso é muito caro. Gastamos muito dinheiro para fazer, mas é um filme que entregamos com muita pesquisa. É um filme para se ver. Como era São Paulo em 1850?

Não era a capital como hoje, tão grande. Era uma cidade muito menor do que o Rio de Janeiro e provavelmente havia cidades do Vale do Paraíba maiores do que São Paulo, como Taubaté. O legal do filme também é isso, de poder viajar por São Paulo no século 19, ver as pessoas negras e movimentando. Muitas ruas sem calçamento, cavalos, as construções.

A gente teve muita intervenção digital nas construções. Tem muita computação gráfica no filme, tem uma embarcação do século 19 toda digital.

Qual a atualidade de Luiz Gama?

Acho que temos, nos últimos tempos, discutido a questão racial, de homens e mulheres iguais. Vimos o assassinato de George Floyd nos EUA, de um homem negro em um supermercado no Rio Grande do Sul, um garoto que caiu num poço do elevador por ser negro, filho da empregada. Isso é de uma crueldade muito grande. A questão racial está presente diariamente nas nossas vidas.

Contra o racismo, há a luta não só dos negros, mas da sociedade brasileira. Lançar esse filme, então, na atualidade, foi para entender onde estão as raízes dessa luta, quem começou e fortaleceu de forma grandiosa essa luta. É a luta do Luiz Gama. Toda essa raiz do racismo que vivemos hoje está presente na escravidão no Brasil. Ele combateu essa escravidão de maneira muito forte, na imprensa, nos tribunais e fazendo poesia também, nas artes.

O filme também tem essa atualidade a ponto de, em muitos momentos, você vai pereceber que Luiz Gama está olhando diretamente e falando com você. Isso aconteceu durante as filmagens dada a atualidade da mensagem, da palavra, dos textos de Luiz Gama.

 Filmes como esse ajudam a compreender o passado escravocrata no Brasil? Como vê o país hoje?

Tem certas questões que são atemporais e é importante se situar. Nós, negros e negras, passamos mais tempo no Brasil como escravizados do que como pessoas livres. Essa luta, essa raiz violenta contra os corpos de pessoas negras, é recente e está presente na nossa sociedade. As pessoas negras estão nas piores escolas, sujeitas à vulnerabilidade maior. A Covid matou muito mais pessoas negras. Os negros moram nos piores bairros.

A elite brasileira não é representada em nenhum momento por pessoas negras. Essa herança da escravidão continua presente. Essa sociedade tal como a conhecemos foi estabelecida no que o professor Silvio de Almeida chama de racismo estrutural. Tudo é construído para que nós, negros, permaneçamos nessa base da sociedade.

Trabalhando ou sem trabalho, os idosos e crianças mais vulneráveis. Essa não é a realidade da maioria da população brasileira, que é feita de pessoas negras. Temos que buscar um lugar na sociedade onde ela realmente seja feita por pessoas iguais, construída por homens e mulheres livres em situação de igualdade.

Só mais recentemente, por causa das cotas, é que temos uma geração negra nas universidades públicas. Por muito tempo as universidades públicas, fruto do imposto pago por muitas pessoas negras, não tinham os filhos dessas pessoas as frequentando. Então, tem essa busca sempre dessa igualdade o que faz dessa luta e da palavra de Luiz Gama muito presentes.

 E o discurso de que o racismo é uma criação da esquerda?

Ouço muito as pessoas dizerem que a questão no Brasil é social, e não racial. Que se o negro ascender socialmente a questão racial some. Mas alguém fez uma pesquisa com os negros ricos do país? Eu não sou uma pessoa pobre, no entanto a questão racial permanece, mesmo tendo cursado a USP e sendo um cineasta.

Não é o fato de ter estudado numa universidade importante e de ser um artista bem suscedido que a questão social some. As pessoas afirmam que negros e negras que ascendem socialmente não sofrem mais a questão racial. Isso é uma aformação tão racista por não ter consultado os negros que ascenderam socialmente.

Isso não é verdade. Basta ver o número de pessoas negras que ascenderam socialmente e que sempre estão vivendo questões raciais. Muitas crianças negras em restaurantes chiques e que são discriminadas por serem negras.

 Como avalia a ascensão de Bolsonaro ao poder?

Podemos presenciar um ataque às pessoas negras, desrespeito à mulher negra, aos quilombolas, por uma série de afirmações durante a ascenção dele. Mas acho que não era nada que muitos já não soubessem. O Luiz Gama dá essa resposta. Gama é uma figura disputada pela direita e pela esquerda.

Provavelmente essas pessoas supostamente de direita são ignorantes porque não leram Luiz Gama. Se ler, naturalmente vai ver que ele não é do autoritarismo, ele é homem do debate, do conhecimento, da ciência. É desse lugar que estamos falando. Quando você não lê e não sabe, se sente livre para ser um idiota.

Luiz Gama utiliza as leis para garantir a justiça. Segundo Luiz Gama, e está no filme, lei e justiça não são a mesma coisa. O fato de ter leis não garante necessariamente a justiça. E um homem que liberta a si mesmo e pelo menos outras 500 pessoas é de uma grande generosidade e de uma grandeza imensa.

Tudo isso é para explicar o quanto se quer estabelecer uma confusão hoje em dia sobre a história de Luiz Gama e consequentemente confundir as pessoas. Como era um homem que trabalhava com a lei, querem colocar nesse lado de Bolsonaro, do presidente da Fundação Palmares. Geralmente essas pessoas não leram Luiz Gama. O convite do filme é que essas pessoas façam um mergulho na obra de Luiz Gama.

 Desde o seu manifesto Dogma Feijoada, em 2000, o que mudou no cinema negro no Brasil?

Cinema sofre os mesmos males da sociedade. Cineastas brasileiros vêm do mesmo lugar do que os policiais, médicos, os governantes, a sociedade brasileira. E esse racismo estrutural também perpassa o cinema. São pouco realizadores e muitas vezes sou apontado como exceção.

Doutor Gama, por exemplo, é o filme mais caro feito por uma pessoa negra no Brasil, o que não me orgulha em nada. Deveríamos ter um número muito maior de pessoas negras, em razão de o cinema ser construído com uma ligação grande com o dinheiro público. Muitas vezes um filme é construído em incentivo fiscal, em editais públicos. Ainda temos pouco acesso a esse lugar. Mas sinto que temos hoje muito mais realizadores.

Primeiro é o fato de ter uma geração que começou pelas redes sociais, que facilita bastante. Minha formação foi na biblioteca municipal de Taubaté. Hoje não. Com cliques no celular consegue pesquisar muitas coisas e até filmar. Essa nova geração tem essa troca e não tem tanta a solidão como eu tive.

O celular consegue rodar vídeos, fazer curtas e disponibilizar nas redes, e é visto no mundo inteiro. Fiz meu primeiro curta na faculdade, com película e tinha 2 minutos e meio. Uma dificuldade trememda. A facilidade da tecnologia ajudou e aumentou o número de pessoas realizando filmes. Mas o mainstream, o lugar das grandes plataformas e tevês abertas, esse lugar ainda temos que conquistas, esses novos artistas e cineastas negras.

Nesse lugar, infelizmente, ainda sou exceção. Esse acesso aos grandes recursos ainda é uma dificuldade para os negros, não só na esfera cinematográfica.

 Você é apaixonado pelo cinema por causa de seu pai. É isso mesmo?

Meu pai tem uma história incrível. Primeiro que ele se chama Orvelino, e só ele tem esse nome. Já o acho especial, meio Pantera Negra. Ele já morreu, mas me lembro da alegria dele. Era corintiano, torcedor do burrão e me lembro de ir ao estádio. Ele tem essa relação muito apaixonante com o cinema, ele gostava muito.

Morávamos na Vila da Mecânica Pesada, perto de Quiririm, e era meio zona rural. Meu pai saía dali e ia até Caçapava buscar um cara que tinha um projetor de cinema. Ele achava importante mostrar isso para o bairro. No final de semana tinha filmes na quadra. Ele tinha um fusca e eu ia no banco de trás, junto com o projetor e aqueles rolos de filme.

Aquilo se montava na quadra, esticava o lençol, ajeitava as cadeiras e tínhamos magicamente um filme, se transformando em as pessoas ali na tela. Imagina isso na cabeça de uma criança de 6 e 7 anos. Sou uma pessoa acostumada a esse universo. Além disso, eu estudava no bairro do Quiririm na escola estadual deputado Cesar Costa, que não esqueço.

A gente descia do ônibus e víamos set de filmagem que eram dos últimos filmes do Mazzaropi sendo rodados ali. Lembro-me dos refletores, de pessoas repetindo cenas e de chegar atrasado à escola por acompanhar aquelas cenas. Hoje realizador, olho para esse passado e vejo a importância que foi para aquela criança.

Com isso, quero lembrar a memória de Mazzaropi e quanto o Vale do Paraíba foi muito importante para o cinema brasileiro. Além de ator, Mazzaropi foi um dos grandes produtores do país. A história do cinema brasileiro passa pelo Vale, e também a história do rock do país, com Celi Campelo. Nem tudo é brejo.

 Quando começou a pensar profissionalmente em cinema e quais os diretores que o influenciaram?

Saí de Taubaté para fazer filosofia na USP. Fiz dois anos e pedi transferência para o curso de cinema. Conheci muita gente que fazia cinema no campus. Vindo de escola pública, era difícil acompanhar aquele curso de filosofia. O cinema era uma felicidade. Estabelecer o estudo e reflexões nas artes de forma diferente. Era parecido com a filosofia, mas organizando o pensamento de outra maneira. Foi importante ter feito esse trajeto de filosofia para o curso de cinema.

Logo no início pensei em ser diretor. O filme ‘Faça a coisa certa’, do diretor americano Spike Lee, mudou a minha vida. Fiquei impressionado com o bairro de Nova York onde se passa a história, de ascendência italiana. Fui aos EUA conhecer o bairro onde ele filmou para entender que filme era aquele, conheci a produtoda do Spike Lee. É um realizador que marcou a minha história, mas há tantos outros que também admiro.

Me interessava muito esse lugar urbano, de efervescência cultural, como em São Paulo. Tem tantos realizadores americanos, franceses, da África, da Itália, que gosto muito. Toda a geração do Cinema Novo no Brasil. Sou apaixonado pelo cinema brasileiro. Gosto muito do cinema paulista e sou grato e feliz de poder fazer meu cinema muitas vezes debatendo com o cinema brasileiro. É um lugar que me sinto confortável de debater ideias e de criar.

Muito orgulhoso de fazer parte. Sinto falta de ter pessoas de vários lugares do Brasil nesse cenário. Há necessidade de ter muito mais mulheres negras no cinema, e há uma geração nova e imensa de mulheres negras realizadoras, que está vindo com muito mais força e potência.

 Essa direita bolsonarista declara uma guerra cultural. Hoje, mais do que nunca, a cultura e a diversidade cultural são necessárias? É preciso defender a arte?

Nós, artistas, não morremos morrerão jamais. Essa é uma garantia. As ideias vão sempre estar por aí. Mesmo os que já se foram a obra continua por aí, basta ir aos museus. Muitas vezes se quer estabelecer uma luta cultaral, mas não tem isso. O que tem é a cultura e a arte de um lado e nesse momento a barbárie, o nada de outro.

A cultura da destruição. Vamos resistir porque há uma vontade de paralisar o cinema brasileiro, o teatro, a cultura, a pesquisa acadêmica no país, mas somos maiores. Eles passarão e eu passarinho. Confio muito nesse lugar. Já passamos muitas vezes por esses momentos difíceis na nossa história.

Essas figuras bárbaras, da destruiçao, elas passam pela história e acontecem, e tem o momento em que sofremos com elas, mas elas estão fadadas a nada. Uma canção está viva. Levantar de manhã e ouvir Djavan, Steve Wonders, Luiz Gonzaga, o que pode contra isso? Essas figuras odiosas e odientas vão passar. É um momento difícil, de desatenção. Resgato uma frase de Martin Luther King: ‘A gente sofre com o silêncio dos bons’. Isso muitas vezes é um perigo.

Essas pessoas que gritam parecem que têm relevância. O tiro faz um barulho enorme, o grito de ódio também, contudo, o beijo, um abraço e um aperto de mão são silenciosos. Tenho certeza que o mundo da virtude, da beleza e dos bons continua muito forte. O horror vai passar porque sempre passou.

Uma das coisas que aprendi com os filmes que vi, dos vários dos artistas da minha formação é que o bem sempre vence no final. O bem sempre está próximo da ciência, da poesia, da diversidade. Estamos num momento de dificuldade, mas vai passar.

 Você se incomoda em ser chamado de “cineasta ou diretor negro” ao invés de apenas “cineasta ou diretor”?

Confesso que já me incomodei mais com isso, mas hoje estou mais tranquilo. Já soltei uma vez que ‘cansei de ser negro’. Cansei de ser o negro que estava na cabeça das pessoas. Sou muito maior do que isso.

Quando falavam o cineasta negro queriam me colocar numa caixinha, do diretor pobre, do filme miserável e sem recursos e que tinha que dar um desconto porque ele era preto, não teria capacidade de fazer um filme sofisticado. Esse negro eu não quero ser. Quero ser o Pantera Negra, de coisas grandonas.

Sempre teve esse lugar do desejo de ser o artista livre para fazer os filmes que queria fazer. Mas sinto hoje que todas as vezes que falam cineasta negro vem carregado de um respeito que consegui ao longo desses filmes todos, de quem já ganhou os principais prêmios do Brasil e do mundo. É um respeito conquistado. Hoje não me incomodo tanto não. Mas acho também é porque eu estou mais tranquilo. Só o fato de fazer filmes me deixa muito feliz.

Nesse momento da história do mundo eu, um homem negro e latino americano, fazendo filmes. Faço duas coisas superbem: pipoca doce e filmes. Modéstia à parte, faço uma das melhores pipocas doce do planeta. Mas vai um salve para todos os pipoqueiros, não os do futebol (risos).

 Quais seus próximos projetos?

Vou para a minha telenovela na TV Globo. Já dirigi uma chamada Bonsucesso e vou para a segunda novela, chamada ‘Além da ilusão’. Estou na equipe da direção da novela, que se passa nos anos 1930, uma época que conhecemos pouco. É um recorte na sociedade brasileira, uma história de amor, um recorte social que me interessa muito.

E fazer uma telenovela para mim é fazer uma cena em três, cinco dias e ver essa cena colocada em que 50 milhões de pessoas vão assistir, no mundo inteiro. Estou feliz de voltar a esse ofício, o exercício de um aprendizado de estar sempre em movimento. Me sinto muito próximo do público. No cinema, falei no M8 pela juventude negra e com Doutor Gama meu conselho é que vai até o final dos créditos, onde tem um recado do nosos elenco, no último minuto dos créditos.

Meu próximo file é sobre a infância, uma criança, uma infância negra. Mas não posso dar mais detalhes (risos). Prepare seu lenço e seu sorriso, que o filme vai emocionar bastante. Estou trabalhando no roteiro e deve ser a minha primeira produção internacional. Mas agora estou na expectativa de Doutor Gama chegar bem nos Estados Unidos e ao mesmo tempo no Brasil, e obviamente no Vale do Paraíba.

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