Nós, os europeus – Por: Rosemeri Moreira

Mas, entre nós, a visibilidade dos negros ainda é um problema. Além de negarmos a existência da população negra, negamos o próprio racismo e ainda insistimos em não ver as desigualdades étnico-raciais que saltam das estatísticas

 

No ano de 2007, fui responsável pela disciplina de Estágio Supervisionado, no curso de História da Unicentro, e me deparei com a singela constatação de alguns alunos de que existia população negra na cidade de Guarapuava.

A descoberta inusitada dos alunos veio após ministrarem aulas nos Cebjas (Centros de Educação Básicas de Jovens e Adultos), em cursos trimestrais nos bairros da cidade. Eles não tinham visto negros na universidade, nem no cinema, nas pizzarias, nos escolas de inglês, nem trabalhando nos bancos, nem vendedores/as das boutiques locais. Mas conseguiram, enfim, enxergá-los: eram trabalhadores/as pobres, adultos, e tentavam ainda cursar o ensino fundamental.

Esses alunos acreditaram na europeidade da cidade. Europeidade efetivada pela junção, sempre reavivada, entre a brancura da pele (de alguns) e o vento gelado, o clima. O discurso memorialista (histórico) construído há tempos, que rememora e enaltece a conquista dos homens brancos europeus, galopando imponentes corcéis, já havia calado fundo no imaginário deles também.

A leitura de Octavio Ianni (As metamorfoses do escravo/1962) se tornou imprescindível para desintoxicá-los do memorialismo. Mesmo não sendo especialista na temática, sabia que desde a década de 1960 as teses da brancura do Paraná (e do Brasil meridional) e a ideia de uma produção baseada no trabalho livre/migrante, já haviam sido contestadas.

Independente do coeficiente relativo de cativos na comunidade, o regime de trabalho escravizado foi a instituição básica para a qual sempre tendeu a utilização da força de trabalho. Em todas as atividades produtivas, nas fazendas de pecuária, na mineração, nos engenhos de erva-mate, nos serviços domésticos, no transporte entre vilas, nas milícias, a população negra, escravizada ou liberta, estava presente.
Mas, entre nós, a visibilidade dos negros ainda é um problema. Além de negarmos a existência da população negra, negamos o próprio racismo e ainda insistimos em não ver as desigualdades étnico-raciais que saltam das estatísticas: escolaridade, homicídio, desemprego, moradia, propriedade da terra etc… Podemos até nos ariscar de falar em cultura-afro, mas o debate sobre o direito à terra nem pensar.
Atualmente, o Paraná tem 41 comunidades quilombolas. Na microrregião de Guarapuava existem oito, e a maior parte delas ainda resiste e luta pelo direito à terra e à moradia. São três em Candói (Despraiado, Vila Tomé e Cavernoso); a comunidade Paiol de Telha que pertence aos municípios de Reserva de Iguaçu e Pinhão; três em Palmas (Trindade Batista; Fortunato e Lagoão); uma em Turvo (Campina dos Morenos).
Na definição contemporânea da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), comunidades quilombolas são os “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”. Quilombolas são comunidades que se constituíram tanto durante a vigência do sistema escravocrata, que durou mais de 300 anos, quanto após a abolição desse sistema no século 19, enfrentando as mais diversas desigualdades e violências até hoje.

Dentre as diversas violências sofridas (humilhações, expulsões da terra, pobreza, assassinatos), para mim, a maior delas segue sendo a da invisibilidade. O debate sobre a situação das oito comunidades quilombolas da região, e em específico a situação da comunidade de Paiol de Telhas, não faz parte da pauta dos meios de comunicação locais nem dos debates políticos, acadêmicos e dos púlpitos religiosos.
Nesta quinta-feira, 28, o TRF4 (Tribunal Regional Federal da Quarta Região/RS) vai julgar em Porto Alegre o processo que envolve a titulação das terras da comunidade quilombola Paiol de Telha. Esse caso tomou dimensões nacionais uma vez que envolve a decisão sobre o questionamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, o qual trata da titulação de territórios quilombolas. No julgamento da titulação da comunidade Paiol de Telha, será consolidada uma posição acerca de todos os outros territórios quilombolas da região Sul, e pode influenciar todos os demais processos sobre terras quilombolas em curso no país. Mas, mesmo assim a luta dos quilombolas não mereceu a atenção da sociedade guarapuavana.

O racismo, ao contrário, escorreu pelas bocas e a reafirmação da posição de classe floresceu como nunca. A negação da “consciência negra” nas redes sociais; o ataque dos capitalistas à lei que instituiu o feriado; e a abolição (cancelamento) pela universidade são os corolários do racismo e de sua estratégia milenar que é o negacionismo. Quem sabe tenha sido a inesperada neve de julho que fez nossa europeidade vir à tona.

Doutora em História Cultural
Professora do Departamento de História da Unicentro

Fonte: Diário de Guarapuava

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