Nossa Pátria Mãe Senil

Fonte: Blogspot-Adelson Santos

Por Adelson Santos*


A maioria do povo brasileiro ainda não aprendeu, e nem sei quando vai aprender, a viver afinado com as regras da civilização. Quando digo “regras da civilização” refiro-me, entre outras coisas, aos princípios éticos que orientam as relações humanas e práticas sociais construídas na base do respeito, da moralidade, da solidariedade, da dignidade e da cidadania. E sendo assim, se a prática social do povo não é orientada por tais regras, o que se vê por aí em cada esquina são as pessoas se agredindo à bofetadas, ofensas gratuitas, discriminações morais e físicas, e assim seguem, todas dançando no ritmo do “farinha pouca meu pirão primeiro” e no compasso da “lei de Gerson” – aquele que aprendeu a levar vantagem baseado na filosofia das chuteiras; tudo isso para que cada individuo possa conquistar seu lugar ao sol e olhar o mundo como se o centro do mundo fosse o seu próprio umbigo.

E por falar em umbigo, vamos afastar o olho do nosso, para tentar enxergar a nossa Pátria Mãe Senil como se fosse uma grande pirâmide. Olhando de longe, tudo parece estar na mais absoluta normalidade. Entretanto, olhando de perto, quando a gente dá um close-up nos detalhes, de qualquer ponto de vista que a gente tente interpretá-la, o que vemos desde a base até o topo, sem qualquer bias ideológica, é um simulacro de nação formada por um povo com excelentes dotes artísticos e esportivos, porém, na esfera política e social, ainda se encontra na idade da pedra lascada pois ainda nem sequer aprendeu a brigar para conquistar seus direitos de cidadão. E quando tenta dá um passo para conquistar tais direitos, acaba se deparando com alguns equívocos, pois, como é fácil perceber, simulacro de nação e povo estão sempre mal resolvidos em vários sentidos: na moral, na justiça, na política, na moradia, nas relações sociais, no trabalho, nos salários, no trânsito, e tantos outros setores da atividade humana. A esbórnia é tão generalizada que nos induz à seguinte pergunta: de onde e como surgiu essa história de sentidos tão mal construídos, tão mal resolvidos, feita de poucos encontros e exagerados desencontros entre os direitos do cidadão e aquilo que o cidadão recebe como recompensa de nossa Pátria Mãe Senil? Ao meu modo de ver, não é difícil encontrar as respostas. Senão vejamos.

Voltando atrás no tempo e no espaço histórico, é fácil analisar e compreender que tudo começa com a chegada dos colonizadores portugueses e a imediata escravidão dos índios para trabalhar, entre outras coisas, na derrubada de pau-brasil e no seu carregamento até as caravelas. Em troca desse trabalho escravo os portugueses davam aos índios espelhos, apitos, chocalhos e outras bugigangas mais. E sendo assim, com o escambo e o trabalho escravo indígena, se inicia o ominoso processo de aniquilamento e desmoralização de uma das raças que formaram o povo brasileiro, e o que é mais grave, seu genocídio físico e cultural sob o olhar do império português com as bençãos da santa madre igreja católica.

Depois, também de olho no comércio europeu, os patriarcas de Casa Grande e Senzala engrossaram o caldo da escravidão com a inserção do negro na produção da cana de açúcar, café, cacau, mineração de ouro e pedras preciosas. Mais um processo civilizatório execrável contra outra raça que contribuiu para moldar o físico, o caráter e a cultura do povo brasileiro. Uma raça que, mesmo depois de abolida a escravatura, a grande maioria, foi condenada à pobreza, à miséria, ao ostracismo, ao silêncio e à margem da história até os dias de hoje. Tudo por conta da discriminação social e da crença na superioridade da raça branca.

Mais recentemente, com a vinda de outros povos europeus e asiáticos para incrementar o capitalismo industrial na república velha, onde o caldo de raças e culturas ficou tão misturado e tão diluído que, depois de diluir o sangue da raça tão completamente, acabou por diluir também as configurações da alma. E daí surgiu o mito da miscigenação colonial e republicana, louvado e mitificado como “a mestiçagem mais perfeita do planeta”. É uma pena que “mestiçagem perfeita” com miséria e desigualdade social não serve pra nada. Pelo visto somos os campeões do mundo na injustiça, na corrupção política, nos baixos salários, nos juros altos, no pagamento de impostos, na violência, no analfabetismo e outras coisas mais que envergonham a todos.

O que sobrou dessa misturada toda é o que vemos da base ao topo espalhado pela pirâmide: um povo sem eira nem beira, que morre de tanto esperar pelo pão que o diabo já comeu, que teima em acreditar que o Brasil é o país do futuro e, também, pra completar o delírio surrealista, abençoado por Deus. Bem, nesse caso, é preciso analisar melhor essa premissa porque ela pode induzir à falsas conclusões. Nesse caso é preciso ver de que Deus estamos falando: do Deus dos ricos ou o do Deus dos pobres; do Deus que constrói condomínios de luxo ou do Deus que constrói favelas; do Deus que protege a minoria ou do Deus que abandona a maioria; do Deus que ilumina os eleitos ou do Deus que apaga os “pecadores”; do Deus que lembra os bons ou do Deus que olvida os “maus”. Precisamos rever nossos conceitos e passar essa história a limpo. Eu particularmente acho que Deus não está nem aí pra quem quer que seja até porque, depois que ele criou o mundo, se aposentou desde quando expulsou Adão e Eva do paraíso.

E assim, sob o estalido dos chicotes e os estampidos dos arcabuzes, se formou o povo do “Deus é brasileiro”. Um povo que pouca ou nenhuma importância dá às “regras civilizadas” que é a base para a formação de uma sociedade aberta e democrática. Dizer que temos democracia no Brasil é retórica cínica e falaciosa. Nossa democracia é uma falsa democracia, ou seja, uma democracia forjada na troca de votos por um pacote de fraldas, um quilo de feijão, uma telha, uma consulta médica, ou um emprego como funcionário público. Uma democracia das elites, como sempre, com políticos corruptos mandando e levando vantagens em todas as paradas enquanto que o povo, espera obediente no meio da manada, obedecendo ordens na base do medo, da porrada e da servidão compulsória.

A pirâmide chamada Brasil foi construída com os esteios da imoralidade e da ética totalitária. E isto tem uma conexão direta com os colonizadores que inventaram o genocídio indígena aos olhos complacentes da igreja católica, que estupraram nossas princesas índias, negras e mestiças e encheram nossa Pátria Mãe Senil de filhos bastardos, que dilapidaram e roubaram nossas riquezas para sustentar o luxo da aristocracia nas cortes brasileira e portuguesa. Com essa moral torta sedimentou-se aqui um povo com a auto-estima usurpada, com uma mordaça na boca e uma venda nos olhos, com a cordialidade subserviente como estratégia de circulação social, com a malandragem como estratégia de sobrevivência.

E deu no que deu. Infelizmente, o que sobrou é o que tai: um povo que circula bem no samba, no carnaval, na música popular, no futebol, no pagode, na festa, na cerveja, no baseado, na moda, na fórmula 1, enfim, como dá pra notar, em atividades propícias à geração de heróis, ícones e mitos. E vai mal onde? Acho que em todo o resto: na mendicância infantil e adulta, nos jovens que se drogam em busca de sentido existencial, nas religiões das pequenas igrejas e grandes negócios, na violência das balas perdidas pelas esquinas, na corrupção política e nos políticos medíocres, no capitalismo selvagem, no trabalho escravo e nos salários de fome, na cultura da alienação, na justiça podre que protege bandidos e estupradores, na educação dos excluídos, na arquitetura pós-moderna que enche o país de favelas, no inferno do trânsito engarrafado a qualquer hora do dia e da noite, na ciência dos foguetes que explodem nas plataformas de lançamento, na filosofia existencialista do sufoco e do desespero, na literatura sem leitores, enfim, no escaldante verão de um meio-dia tropical.

 

*Adelson Santos é formado em Letras e Maestro, Compositor e Professor de música da UFAM.

 

Matéria original: Nossa Pátria Mãe Senil

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