‘Nossa única chance de sobreviver é preservar a democracia liberal’, diz filósofa húngara Ágnes Heller

Aos 89 anos, filósofa húngara Ágnes Heller, que sobreviveu ao Holocausto e ao comunismo, vê premiê húngaro Viktor Orbán como um novo tirano Foto- Reprodução : O Globo

Aos 89 anos, discípula do filósofo marxista György Lukács que passou por três totalitarismos vê ascensão de ‘novas tiranias’ na Europa, com Orbán, Erdogan e Salvini

por Sarah Halifa-Legrand, do Le Nouvel Observateur no O Globo

Aos 89 anos, filósofa húngara Ágnes Heller, que sobreviveu ao Holocausto e ao comunismo, vê premiê húngaro Viktor Orbán como um novo tirano Foto- Reprodução : O Globo

Nesta semana, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán anunciou uma nova medida que aumenta o seu controle do Judiciário do país. É mais um passo para levar adiante sua autoproclamada “democracia iliberal”, que a filósofa húngara Ágnes Heller, aos 89 anos, chama de “uma nova tirania”. Discípula do filósofo marxista György Lukács, essa grande intelectual tornou-se especialista em regimes autoritários. Criança, viveu sob a ditadura do Almirante Horty. Depois escapou por pouco do Holocausto, fugiu do regime comunista e exilou-se na Austrália em 1977. Em 1986, mudou-se para a New School de Nova York, onde assumiu a cátedra de Hannah Arendt. De volta à sua terra natal, essa fervorosa defensora da democracia liberal agora não dá tréguas ao “novo tirano” de Budapeste.

A senhora viveu sob o jugo de diversos regimes autoritários. Diria que a Hungria está retomando o mesmo caminho?

Nem todas as tiranias se parecem. Orbán não instaurou um regime autoritário, mas uma nova forma de tirania que se espalha hoje pelo mundo, onde um tirano é eleito, depois reeleito e novamente reeleito. Como Orbán, Putin, Erdogan. O próprio Orbán descreve essa nova tirania como uma democracia iliberal. Democracia, pois o regime é fruto de uma votação majoritária. “Iliberal”, porque não há mais direitos humanos, nem pluralismo. É um governo totalmente centralizado: nada mais pode acontecer na Hungria sem que ele assim tenha querido.

Nesse tipo de regime assistimos a uma “refeudalização” progressiva. O poder transforma em renda o que dependia anteriormente do lucro redistribuído pelo capitalismo, e cria sua própria oligarquia. Falar sobre esses regimes como se falava do nazismo ou do stalinismo é não perceber o que está acontecendo, nem compreender os seus perigos.

Vejam Matteo Salvini, na Itália. É um pequeno “Duce”, mas não vai marchar sobre Roma, nem tomará o poder pela força. Ele fará exatamente como fez Orbán. Chegar ao poder pelo voto majoritário, e lá permanecer, por meio de reeleição após reeleição. Todos esses novos tiranos se escondem atrás do argumento poderoso do voto majoritário, apresentado como uma garantia da natureza democrática de seu regime. Mas não se trata disso! Esses regimes não se parecem em nada com aquilo que chamamos de democracia. Pois, desde a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, a democracia moderna é sinônimo de democracia liberal.

Como tantos países puderam cair nessa nova forma de tirania?

Isso aconteceu progressivamente, com a passagem da sociedade de classe para a sociedade de massas. Hannah Arendt havia explicado como as classes sociais foram destruídas na União Soviética. Numa sociedade totalitária, isso ocorre de modo mais rápido; na sociedade tradicional, o processo é mais lento. Mas atualmente, entramos em toda parte na era das sociedades de massa. Esse processo é acompanhado pelo desaparecimento progressivo dos partidos políticos tradicionais, que representavam os interesses das classes.

Esse novo tipo de tirania baseia-se na existência de uma sociedade de massa, contrariamente à ditadura tradicional, que se apoiava nas sociedades de classe. Nas sociedades de classe, o voto servia aos interesses de classe. Caso não representassem esses interesses, os tiranos deveriam tomar o poder pela força. Porém, nas sociedades de massa, a maioria é formada pelas ideologias, e não pelos interesses de classe. A sociedade de massa não determina que o governo seja tirânico. Mas torna mais fácil a eleição dos tiranos. Na Europa do Leste, isso fica ainda mais fácil, pois não existe uma tradição democrática. Na Hungria, de fato, nunca houve realmente uma democracia liberal propriamente dita.

A senhora quer dizer que aquilo que pensávamos ser uma democracia liberal depois de 1989 na verdade não o era?

Sim. Após 1989, é verdade que tivemos enfim aquilo que se pode chamar de democracia liberal no governo e no parlamento. Nós, os intelectuais, podíamos falar o que quiséssemos. Era genial. Mas nós não entendemos que isso não bastava para atingir uma democracia real. Esta nunca conseguiu se enraizar no seio da população húngara. Os húngaros nunca tinham sido acostumados a tomar em mãos seu próprio destino, exceto em duas breves oportunidades, durante as revoluções de 1848 e de 1956.

George Soros, o milionário e filantropo americano de origem húngaro, tinha tomado para si a missão de ajudar a instaurar uma democracia liberal na Hungria. Segundo a senhora, ele fracassou?

De modo geral, foi bem-sucedido. Ajudou a oposição húngara na época de János Kádár [que dirigiu a República Popular da Hungria entre 1956 e 1988]. Depois da mudança do regime em 1989, não buscou mais ter influência na Hungria, pois pensava que, de modo geral, havíamos nos tornado uma democracia, não precisávamos mais de sua ajuda, podíamos tomar conta de nós mesmos sozinhos.

A única coisa que ele fez depois foi a Universidade da Europa Central, hoje expulsa da Hungria por Orbán. Orbán transformou Soros na encarnação do diabo, em inimigo do povo húngaro. O mesmo que fez Erdogan com Gülen. Isso é não somente absurdo, mas também é ridículo. Pois se Soros realizou muitas coisas problemáticas, fez também muitas coisas boas. Não se trata nem de um demônio nem de um anjo.

Considera-se habitualmente que a transição posterior a 1989 não deu certo na Europa do Leste devido ao fato de uma grande parte da população não ter se beneficiado da liberalização econômica. Foi isso que abriu caminho para um regime como o de Orbán?

Esta é uma explicação simplista de mais. Do meu ponto de vista, se Orbán conseguiu captar o ressentimento dos húngaros, que não conseguiram se adaptar à democracia liberal, foi porque entendeu que era preciso uma ideologia para conquistar o poder numa sociedade de massa. Essa ideologia é o nacionalismo étnico. Ele faz uso dela como um instrumento de poder.

É preciso entender quem é Orbán. Está interessado unicamente na maximização de seu próprio poder. Não promete mais nada, além de dizer que defende a população, sua identidade, a cristandade, a soberania húngara contra inimigos inventados. Contra os migrantes, mesmo que não existam migrantes na Hungria, contra as ONGs que os ajudam, a União Europeia, George Soros. É uma ideologia negativa, um tipo de niilismo. Cuidado, não quero dizer com isso que, inversamente, as ideologias positivas sejam sempre boas! O fascismo era uma ideologia positiva que prometia alguma coisa, por exemplo.

A senhora foi uma das primeiras intelectuais a terem sido escolhidas como alvo por Orbán, a partir de 2011. Por quê?

Não fui somente eu, mas os filósofos que foram atacados. Antes de Orbán, Kádár tinha agido da mesma maneira. É natural para uma tirania começar pelos filósofos, apontá-los do dedo como inimigos do povo. Pois os filósofos estão afeitos à liberdade. Escrevem e acreditam na liberdade de pensamento. As acusações mudam de acordo com a época.

Para Kádár, éramos antimarxistas. Para Orban, desviamos dinheiro. Afinal, foi mais fácil para nós desmontar as acusações de Orbán do que as de Kádár. Pois Kádár não estava totalmente errado quando nos acusava de sermos antimarxistas! Enquanto que o falso processo instalado contra nós por Orbán não deu evidentemente em nada. Mesmo assim, ele mantém a pressão contra nós. Recentemente, o porta-voz do governo resolveu me atacar e me tratou de “velha comunista com espírito estreito”. Nem respondo a esse tipo de debilidade. Posso provar que não sou comunista, mas não posso provar que não sou estúpida!

Todos os bolsões de resistência estão sendo atacados. Orbán colocou os poderes executivo e legislativo em posição de sentido, destruiu ou marginalizou as organizações civis, comprometeu o poder judiciário, que havia conservado alguma independência, e colocou a ciência sob sua vigilância. Quer escolher o que deve ser estudado nas instituições de pesquisa. Assim como proibiu os estudos de gênero nas universidades, quer também controlar o que se está fazendo em pesquisa. Lançou um “combate pela civilização” contra os intelectuais, os cientistas e os artistas. Infelizmente, nesse tipo de luta, o governo sempre vence. Ele detém o poder absoluto e o dinheiro.

Muitos intelectuais abandonaram a Hungria. A senhora encara isso como sendo o nascimento de uma nova dissidência?

Há três tipos diferentes de pessoas que abandonam a Hungria. Os intelectuais, em busca de trabalho; os estudantes, para prosseguir seus estudos; e os cientistas e pesquisadores. É provável que todos permaneçam no exterior. Ninguém tenta organizar uma nova dissidência. Não existe um jornal dos emigrados húngaros, nem uma rádio Free Europe, como havia no tempo de Kádár. Excetuando-se Budapeste, as pessoas não têm acesso nem leem os raros órgãos alternativos de imprensa que ainda existem. Não vamos encontrar oposição democrática em meio à população.

Quanto aos partidos de oposição, nada têm a dizer. Não entenderam ainda que entramos numa nova era que precisa de ideologia. Falam ainda a linguagem da sociedade de classes e não conseguem angariar apoio. Em toda a parte, na Europa, os progressistas ainda não descobriram sua ideologia. Enquanto isso, os novos tiranos compreenderam que o nacionalismo étnico era o que havia de mais simples como ideologia para conquistar a maioria.

Que outra ideologia poderia se contrapor a esse nacionalismo étnico?

Precisamos de uma outra história. A ideologia sempre é uma história. E o nacionalismo étnico opera como uma história. Eis o que ele conta; a União Europeia nos rouba nossa soberania, nossa identidade, nossa cultura, e nós nos defendemos. Mas nós poderíamos opor a isso uma outra história: o nacionalismo étnico nasceu com a Primeira Guerra Mundial e destruiu a Europa durante todo o Século XX. Devemos a ele três totalitarismos, o Holocausto, a Segunda Guerra Mundial, cem milhões de cadáveres. Vocês ainda desejam isso? Quantos cadáveres?

A história que podemos contar é a seguinte: desejamos a união da Europa para que isso nunca mais se reproduza. Nossa única chance de sobreviver é preservar a democracia liberal. Pois é realmente a única coisa que nos resta.  Por que não recorremos a essa história? Fato é que o presidente Macron vem tentando fazer isso. Mas ele não explorou todas as possibilidades dessa narrativa.

Segundo a senhora, a democracia liberal é então o melhor regime possível?

Sim. Penso que o desenvolvimento da história europeia atingiu sua última fase com a democracia liberal. Não se pode ir mais longe. Podemos somente melhorá-la: a liberdade pode ainda ser explorada e desenvolvida em muitas direções.

Seu trabalho filosófico foi influenciado por dois pensadores, Gyórgy Lukács e Hannah Arendt. Qual dos dois lhe parece mais útil para compreender o que acontece hoje em dia?

Não acredito que filosofar traga uma resposta às questões que se colocam no momento presente. A filosofia fornece apenas o método para buscar as respostas. O filósofo olha para o mundo e reflete sobre o que acontece. Ele não diz: isso é populismo, aquilo é nazismo, ou pós-fascismo.  Ele não considera as coisas como dadas. A filosofia é muito ingênua. Olha para o mundo como uma criança. E reflete sobre as alternativas possíveis para esse mundo. Isso, eu aprendi com Gyórgy Lukács.

 

( Entrevista concedida ao Le Nouvel Observateur – Tradução de Milena Piraccini).

Leia também:

Judith Butler: “Matar é o ápice da desigualdade social”

-+=
Sair da versão mobile