Novos Rumos na Lei de Racismo (Lei 7716/89): Aprovação do PL 4566/2021

FONTEPor André Nicolitt, enviado para o Portal Geledés
André Nicolitt/ Imagem: Arquivo Pessoal/André Nicolitt

O Projeto de Lei 4566/2021 introduziu significativas mudanças aos crimes de racismo até então regidos no plano infraconstitucional pela Lei 7716/1989 e pelo Art. 140, §3º do Código Penal (injúria racial). O projeto dá mais funcionalidade ao sistema que pretende punir os crimes de racismo e também impacta o cenário através de incremento de pena. Cabe-nos, então, nesse breve ensaio, fazer alguns apontamentos sobre essa novidade anunciada para 2023, vez que o projeto segue para sanção presidencial. 

Diante do incremento de pena, cabe uma reflexão prévia. Angela Davis considera o abolicionismo uma teoria e uma prática fundamental ao século XXI¹. Sua escrita encoraja leitores a questionar suas certezas sobre a prisão e o sistema penal². Ensina-nos que o desafio mais difícil e urgente hoje é explorar de maneira criativa novos terrenos para a justiça nos quais a prisão não seja mais nossa principal âncora³.

De nossa parte, vemos o abolicionismo como um devir. A ideia de devir é “nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade”⁴. 

Anamaria Salles, ao falar de abolicionismos, os aponta como devires-minoritários que não se deixam fixar, mas formam alianças com outros devires-minoritários conforme a situação, sem assumir outras formas de justiça e sem instituir outros modelos rígidos que dificultam os percursos inesperados⁵. 

Essa perspectiva nos permite lidar com o comando constitucional de criminalização do racismo, inclusive, ungido pela imprescritibilidade. Isso porque, embora encantados pela leveza e elevação do pensamento abolicionista, é possível aderir a um modelo que contextualmente é capaz de dar significativa contribuição a liberdade. Podemos falar, por exemplo, das concepções teóricas ligadas ao garantismo e à Criminologia Crítica.

Em síntese, a adoção da teoria garantista pressupõe o acolhimento de alguns postulados teóricos e principiológicos, dentre outros, o compromisso com a tutela da liberdade diante do exercício arbitrário do poder e a adesão a um Direito Penal mínimo⁶. 

Nessa linha de entendimento, adotar um Direito Penal garantista significa defender um Direito Penal mínimo, que só atue naquilo que for efetivamente necessário ao convívio social. 

Ademais, o constitucionalismo garantista acredita na importância da concretização dos valores constitucionalmente protegidos. Na experiência brasileira, após 350 anos de escravização, o legislador constitucional entendeu que a questão racial tem dignidade penal, de modo a ser colocada no rol dos bens jurídicos essenciais que devem estar sob a tutela do direito penal.

Podemos ser críticos à propriedade privada e a instituição de um sistema penal como de fato somos. No entanto, dentro do quadro constitucional em vigor, esses institutos (propriedade privada e direito penal) ditam a racionalidade da atual ordem social e temos que lidar com isso da melhor forma possível (intervenção mínima). 

Até aqui, o que pretendemos é estabelecer certa pré-compreensão relativa a uma visão antipunitivista e a legislação que criminaliza o racismo. Estabelecidas tais premissas, é possível passarmos a uma breve análise do PL 4566/2021 que, uma vez sancionado, modificará a Lei 7716/1989, estabelecendo importantes modificações no processo de criminalização do racismo. 

A primeira observação que devemos fazer é que depois dos horrores dos 350 anos de escravização no Brasil, da experiência do tráfico negreiro pelo mundo e dos horrores do nazismo, todos esses fatos históricos, fundados no racismo, não deixam dúvidas de que o preconceito, a discriminação e o racismo devem ser reprovados por todos, destacadamente por qualquer Estado que se pretenda Democrático. Com efeito, o comando constitucional de criminalização não é algo desarrazoado em uma racionalidade que opera com o sistema penal como ultima ratio. Desarrazoado e irracional é a punição de um furto (de bicicleta, por exemplo) mediante rompimento de um cadeado poder ter uma pena de 08 anos de reclusão. 

Fruto da intensa luta dos movimentos negros na Assembleia Constituinte de 1987/1988, a vigente Constituição Federal consagra o princípio do repúdio ao racismo (artigo 4º, inciso VIII) – que deve reger as relações internacionais do Estado brasileiro – e criminaliza sua prática, na condição de crime imprescritível e inafiançável (artigo 5º, inciso XLII)⁷. 

Em 1989, adveio a Lei 7716/89 (Lei Caó), que cumpriu o mandamento constitucional de criminalização do racismo. Com sua atual redação alterada por cinco leis⁸, desde a sua entrada em vigor, a Lei nº 7.716, de 1989, tipifica condutas criminosas resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Apesar da evolução legislativa antirracista na ordem jurídica brasileira, a mera criminalização não se fez capaz de prevenir práticas racistas que, sequer, têm sido objeto de eficiente persecução criminal. Embora reconheçamos a relevância do reconhecimento da necessidade de tutela penal contra práticas racistas –, a esfera penal não é a mais adequada para a promoção dos direitos da população negra, mesmo porque se restringe a atingir condutas intersubjetivas, pouco contribuindo para a desestabilização das estruturas racistas. 

A legislação que pune o racismo é marcada por inefetividade e isso não decorre propriamente da ausência de figuras típicas, tampouco da medida (tamanho) da pena prevista para os delitos, mas sim de uma resistência sistêmica racista que se manifesta no campo dos procedimentos, das provas e da interpretação.

Com efeito, a Comissão de Juristas constituída pela Câmara dos Deputados para contribuir para uma legislação antirracista, majoritariamente, buscou não se seduzir com os anseios do populismo penal, com a promessa de proteção por intermédio do exacerbamento desproporcional das penas, rompendo com a racionalidade de um direito penal com bases democráticas. Apesar de divergências internas que resultaram em duas propostas de modificação da Lei de Racismo constante no relatório final dos trabalhos da comissão, uma proposta que dava relevo a exacerbação das penas e outra que buscava um cariz mais funcional, este segundo acabou por dar sustentação ao PL 4566/2021, que foi aprovado pela Câmara e aguarda a sanção presidencial. 

O projeto inicial, de autoria dos Deputados Tia Eron e Bebeto, recebeu o número 1749/2015 e foi remetida ao Senado Federal em 30 de novembro de 2021.   Todavia, nesse mesmo dia em que essa matéria foi aprovada na Câmara dos Deputados, a Comissão de Juristas, destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural no país, instituída no âmbito da Câmara dos Deputados e composta por eminentes juristas, apresentou o seu Relatório Final com diversas sugestões legislativas. 

E foi justamente nessas sugestões apresentadas que o Senado, através do Senador Paulo Paim, se baseou para propor o Substitutivo que retornou à Câmara em 25/05/2022, sob o número PL 4566/2021. 

A proposta da comissão de juristas, composta por negros e negras, se apresenta como alternativa ao puro simbolismo sem função, ofertando mecanismos que visam conferir maior eficiência e efetividade à Lei 7716/89, atacando questões centrais, que definitivamente não passam pelo mero recrudescimento de pena, estratégia falida no combate à violência, mas historicamente eficiente para privar a população negra da liberdade, entulhando-as no cárcere, com rótulos de hediondez de suas práticas.

A primeira significativa mudança consistiu em deslocar para o âmbito da lei de racismo (Lei 7716/89) as ofensas à dignidade e ao decoro, até então previstas no art. 140 do Código Penal. A modificação proposta teve por fim acabar com a controvérsia sobre a natureza do crime e a incidência da imprescritibilidade constitucional. 

Uma análise técnica e dogmática não deixava dúvida de que a chamada “injúria racial”, apesar de prevista originalmente no código penal, surgiu no ceio de legislação antirracista que regulamentava o comando constitucional. Isso é, a Lei 9459/1997 alterou os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescentou o parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848/1940. Desse modo, a própria topologia e teleologia estavam insertas na resposta penal do Estado brasileiro ao racismo. Não poderia sofrer tratamento distinto daquele indicado pelo texto constitucional. 

O próprio STF colocou um ponto linear na controvérsia ao decidir que injúria racial era racismo, submetido ao mesmo regime jurídico. Sem prejuízo, a comissão, com vistas ao aperfeiçoamento e sistematização da legislação, entendeu ser melhor que a atividade legislativa colocasse um ponto final na questão, sendo de todo conveniente, inclusive, que isso ocorra pelo próprio Parlamento com sua legitimidade incontestável de legislar. 

No texto proposto pela comissão de juristas, no qual tivemos a oportunidade de trabalhar diretamente, coerente com a ideia de evitar a expansão punitiva, a injúria racial continuaria com a pena de 01 a 03 anos. Todavia, no ajuste feito no Senado Federal, os parlamentares acharam por bem elevar a pena que passou a ser de 02 a 05 anos, superior ao crime do art. 20 da Lei 7716/89. É bem verdade que a modificação feita pelo Senado pode até se justificar pela diferença entre o racismo (art. 20) e a ofensa racial, que é um crime de dano concreto. Sendo assim, não apresenta problema de desproporcionalidade, estando a mudança dentro de uma racionalidade e da soberania do legislador ordinário.  

A segunda proposição preocupa-se com o racismo esportivo, algo muito presente no cotidiano, não só do Brasil, como mundial. Nos esportes é muito comum os negros e negras ascenderem vigorosamente, o que desperta, não raro, ódio, pois afinal, como diz Emicida, “Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei”. 

O PL 4566/2021 deu relevo, ainda, ao racismo religioso. Assim ficou disposto: 

§ 2º-A. Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público: 

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, artísticas ou culturais destinadas ao público, conforme o caso.

Neste particular, a resposta penal apresenta, além da pena privativa de liberdade, a de suspensão de direito de frequentar determinados ambientes, cuja experiência apresenta bons resultados no âmbito da legislação de trânsito e também na experiência de alguns juizados especiais criminais. 

Não escapou do trabalho a preocupação com uma forma de racismo que, além de causar danos à saúde mental, humilhação e sofrimento, não raro é um subterfugio retórico para a impunidade relativamente a atitudes racistas. “Não tinha a intenção de ofender, era brincadeira”.  O racismo recreativo corriqueiramente é usado como argumento de defesa em processos judiciais. 

Ora, uma ofensa, seja racial ou não, no calor de uma discussão, não deixa de ser reprovável. Porém, uma ofensa com o intuito de divertir, recrear, é algo ainda mais reprovável, com poder maior de inferiorização e que disfarça seu caráter perverso. Portanto, sugeriu a comissão, e acolheu o parlamento, a seguinte redação: 

Art. 20-A. Os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.”

Uma vez que o racismo recreativo passa a ser uma causa de aumento da pena não servirá mais como argumento de defesas diante dos crimes de racismo. 

Ademais, duas normas não incriminadoras estão previstas e são importantíssimas. Uma regra de interpretação e a previsão de assistência judiciárias às vítimas de racismo. 

“Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.”

A comissão expressou a necessidade de uma proposta de interpretação que auxilie uma justiça antirracista, possibilitando a formação de uma hermenêutica disruptiva. Na doutrina do direito, a partir do recorte racial, já se propõe uma contribuição científica imprescindível na afirmação de um raciocínio antirracista como elemento central da interpretação das relações jurídicas, especialmente as constitucionais⁹. A raça ocupa um papel central no processo interpretativo da igualdade. 

Por fim, a assistência judiciária é uma ferramenta protetiva importantíssima. Até porque, não é raro que vítimas de racismo entram em uma delegacia como noticiantes e saem dela como indiciados, ou ainda, figurem em processos judiciais como vítimas e acabam, pelo racismo, metamorfoseados em réus. Seguramente, a assistência judiciária será importante para o trabalho e a tentativa de romper as estruturas racistas das instituições e do sistema de justiça.  

“Art. 20-D. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a vítima dos crimes de racismo deverá estar acompanhada de advogado ou defensor público.”

Uma vez aprovado pela Câmara dos Deputados, será submetido ao Presidente da República e poderá ser uma das primeiras Leis sancionadas pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva e, se assim o for, que seja um sinal de que o antirracismo será uma política de Estado. 


¹Davis, Angela, A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018, pág. 92.

²Davis, Angela, Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018, pág. 10.

³Idem, pág. 22

⁴Gilles Deleuze e Claire Parnet. Diálogos. Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo, Escuta, 1998, p. 8.

⁵SALLES, Anamaria.  O abolicionismo menor de Louk Hulsman.  Revista do Nu-Sol – Núcleo Sociabilidade Libertária – Programa de Estudos Pós-Graduados da PUC-SP. Verve, 20: 101-113, 2011. 

⁶NICOLITT, André. De Ferrajoli a Oxóssi: o que se espera de uma reforma penal antirracista? https://www.migalhas.com.br/coluna/olhares-interseccionais/342546/o-que-se-espera-de-uma-reforma-penal-antirracista

⁷VAZ, Lívia Sant’Anna. Racismo religioso no Brasil: Um velho baú e suas novas vestes. Migalhas, disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/olhares-interseccionais/339007/racismo-religioso-no-brasil–um-velho-bau-e-suas-novas-vestes 

⁸As Leis nº 8.081, de 1990; nº 8.882, de 1994; nº 9.459, de 1997; nº 12.288, de 2010; e Lei nº 12.735, de 2012. 

⁹ MOREIRA, Adilson José. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.


André Nicolitt. Juiz de Direito do TJRJ.  Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa.  Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do PPGD – Faculdade Guanambi – BA. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – Ibccrim. Membro do Instituto Carioca de Criminologia – ICC. Membro Emérito do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP. 


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