Nudez e pedofilia: onde está o real problema?

Incentivamos uma relação com a sexualidade desigual e potencialmente perigosa para meninas e mulheres, corroborando com esse número vergonhoso de abusos

por Tayná Leite no AzMina

No dia 23 de setembro deste ano uma menina de 5 anos foi estuprada dentro de um supermercado em Porto Alegre. O vídeo das câmeras de segurança do local vazou e foi compartilhado centenas de milhares de vezes nas redes sociais, expondo de maneira completamente insensível essa menina que já é vítima do mais hediondo dos crimes.

Para além do fato de que quem compartilhou o vídeo também incorria em crime, foi bastante incômodo acompanhar os comentários usados por essas pessoas para se defenderem, alegando que o vídeo serviria para alertar os pais, como se fosse necessário assistir a cenas perversas para sensibilizarmo-nos com determinados temas.

O assunto deu o que falar e nos grupos de mães dos quais faço parte não poderia ser diferente. Entre alguns “meu Deus que mundo é esse” e “socorro o que vai ser da minha filha”, muitas mulheres (muitas mesmo!) acabaram desabafando sobre as violências vividas por elas próprias. Todas, as que sofreram e as que não sofreram, questionavam-se sobre qual seria a melhor forma de abordar o tema para preservar suas filhas (e filhos), e os debates foram ao mesmo tempo ricos e um tanto deprimentes.

Quem, como eu, estuda o tema há tempos está careca de saber dos números.

Segundo dados do Ipea, 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, sendo 89% do sexo feminino – quando olhamos as vítimas entre 14 e 17 anos as meninas chegam a 94%. Entre as vítimas de até 13 anos, elas são 81%.

Já de cara, para os malas de plantão que gostam de “lembrar que também há mulheres abusadoras”, podemos destacar que não estamos aqui para debater os 7% (sim, 93% dos abusadores tanto de meninas quanto de meninos são homens!), mas sim uma cultura que reiteradamente viola (ou minimiza violações) aos corpos femininos.

Como mãe de menino, eu me pergunto sempre como ensiná-lo a defender-se e ao mesmo tempo como tratar com naturalidade a sexualidade, sem banalizar o tema. Me questiono também como ajudá-lo a tornar-se um homem que respeita todos os corpos e que compreende o que é consentimento.

Fiquei apenas observando por um tempo os debates. Se falou muito de um “confiar desconfiando”, de não deixar dormir fora de casa nunca “pois nunca sabemos quem são os pais, tios e amigos da família dos amiguinhos”, e muitas outras medidas que, na minha visão e com todo o respeito, são inócuas.

Se 24% dos agressores das crianças e adolescentes são os próprios pais ou padrastos e 33% são amigos ou conhecidos da vítima, nem mesmo uma clausura protegeria essas crianças adequadamente se elas não estiverem aptas a defenderem-se de alguma forma

Para mim sempre foi muito mais sobre criar um ser humano com autoestima. Alguém que saiba que é amado incondicionalmente e que pode confiar em mim sabendo que ele sempre estará à frente e acima de todas as prioridades.

Com certeza irei ensinar meu filho a respeitar o corpo dele e dos outros. Desde já converso com ele sobre o quanto as partes intimas dele são só dele e ninguém deve mexer a não ser quem está encarregado de limpá-lo, e toda a cartilha que vemos por aí. Mas acima de tudo quero que ele saiba MESMO que pode confiar em mim incondicionalmente!

Dos 10 anos de abuso incestuoso que sofri nenhuma marca ou cicatriz foi mais dolorida de curar do que a mágoa de achar que minha mãe não me amava o suficiente para acreditar que a culpa não era minha!

Eu acredito que a violência (não apenas sexual, mas também os relacionamentos abusivos) se perpetua na fragilidade da autoestima. Seja porque o abusador “seduz” e dá amor à vítima para depois fazê-la acreditar que ela não é merecedora de outra forma de amor, seja por fazê-la refém da culpa e da vergonha.

E eis que, enquanto pensava sobre esse texto tendo que lidar com meus próprios gatilhos e pesadelos, me deparo com a mais nova polêmica: uma exposição no MAM em que há uma performance de nudez ao qual uma mãe levou sua filha e a permitiu tocar o homem nu. Não vi o vídeo, não vi a exposição e, portanto, não vou falar do que não sei. Vou falar do que sei:

Criar tabus não adianta nada! Criar pânico, medo, frisson em volta do que deveria ser natural apenas potencializa e amplifica uma cultura do estupro que permite que homens se sintam no direito de invadir os nossos corpos como e quando bem lhes interessa

Eu não acho que haja nada de transgressor e inovador na nudez de um homem branco e provavelmente não levaria meu filho a esta performance artística, mas a forma como o assunto como um todo está sendo tratado me assusta muito. Conservadores que pouco se importam com crianças (especialmente pretas e pobres) fazendo palanque desse acontecimento para gritar contra a pedofilia quando abusos acontecem debaixo dos nossos narizes nas escolas, no parquinho, nas igrejas e em casa. Tudo isso me parece o foco errado para um problema que é muito maior do que uma exposição artística que muitos podem sim considerar de gosto duvidoso.

O verdadeiro debate para mim enquanto mãe e feminista é sobre a construção de uma relação natural e saudável com os nossos corpos e os dos outros. Sobre respeito e sobre liberdade para sentir.

É nesse terreno intolerante e com muito grito e pouca escuta que a construção dessa masculinidade tóxica mais uma vez vem fazer danos. É dizendo que meninos não choram e que meninas precisam ser submissas para serem amadas, ou que meninos são viris, incentivando o falocentrismo e o ser “pegador”. Ao mesmo tempo escondemos os corpos femininos, negamos o prazer da menina dizendo que o tocar-se é sujo e feio (enquanto o do menino é exibido como um troféu).

Incentivamos uma relação com a sexualidade desigual e potencialmente perigosa para as meninas e mulheres, corroborando com esse número vergonhoso de abusos e feridas que se perpetuarão para toda a vida

Ao ler a notícia sobre o estupro citado no início do texto meu coração ficou um tiquinho mais leve quando vi que a menina correu para a mãe e lhe contou tudo! Porque sim, não há como evitar todos os males aos nossos filhos, mas podemos minimizá-los quando são logo identificados e tratados.

 

FONTES: https://plan.org.br/sites/files/plan/field/field_publication_files/cartilha_digital_v1.pdf

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
-+=
Sair da versão mobile