Fui conselheira do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ligado à Presidência da República) em 2003, uma experiência muito transformadora em minha trajetória de vida.
Nas reuniões desse conselho, o programa Fome Zero era o tema que nos mobilizava, e tenho me lembrado de quão intensos eram os debates.
Considerado a maior iniciativa do governo federal do gênero na história do país, o Fome Zero focava a segurança alimentar a partir de um conjunto de políticas públicas, como a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e de um grande mutirão contra a fome envolvendo os governos federal, estaduais e municipais e todos os ministérios.
As ações eram muito diversas, indo desde a ajuda econômica com o cartão Bolsa Família até a construção de cisternas no sertão nordestino, passando pela criação de restaurantes populares, ensinamentos sobre hábitos alimentares, distribuição de vitaminas e suplementos alimentares e microcrédito para famílias mais pobres, entre outras.
Entendíamos segurança alimentar a partir do conceito de garantia do direito de todas as pessoas a alimentos de qualidade, respeitando as características culturais de cada povo no ato de se alimentar.
Discutíamos que as famílias participantes do programa teriam de manter seus filhos na escola e que participariam de conselhos que planejavam as ações. Buscava-se combinar a defesa de direitos com políticas emancipadoras que fortaleceriam a autonomia das famílias.
Nesse propósito, várias ações estruturais eram também debatidas e implementadas, seja em geração de emprego e renda, incentivo à agricultura familiar, alfabetização de adultos, reforma agrária, bolsa escola e renda mínima. Guardo a certeza de que esta é a agenda mais urgente que o Brasil precisa implementar: sair novamente do Mapa da Fome.
Programas sociais como Fome Zero, Luz Para Todos ou Cisternas, entre tantos, modificaram a vida de milhões de pessoas no Brasil. Outros empoderavam as chefes de família por meio do cadastro prioritário em nome de mulheres, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, muito relevantes num período histórico como este que vivemos.
Nenhum deles era perfeito ou foi completamente implementado. A concepção e implementação de muitos envolveu tensões e amplos debates entre o poder público e a sociedade civil.
Mas a coragem impulsionou o avanço, e assim saímos do Mapa da Fome em 2014. Naquele ano, o Brasil não resolveu os problemas de segurança alimentar e nutricional, mas conseguiu tirar as pessoas da situação extrema que é a fome.
No país que sonhamos, novas iniciativas serão inventadas, mas sementes boas como as que vêm desses programas abrem caminhos para grandes saltos que acelerem a retirada de famílias da situação de pobreza extrema.
O Prouni, a política de cotas no ensino superior, a lei Maria da Penha e o programa de saúde integral da população negra precisam ser aprimorados. Mas representam uma estrada já trilhada no campo das políticas públicas pela equidade.
Famílias brasileiras podem ter condições de se preocupar em estudar, buscar melhores oportunidades de trabalho, iniciar seu próprio negócio, se conseguirem vencer o primeiro desafio que significa vencer a fome. Como diz João Bosco: “A raiva dá pra parar, pra interromper… A fome não dá pra interromper”.
Assim, nos dias que antecedem a eleição, ainda podemos batalhar por votos esperançosos de nossa família, de nossos amigos, de nossos vizinhos. É em 2 de outubro que poderemos fazer a diferença na direção de outro Brasil, mais civilizado e mais humanizado.
Cida Bento
Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP