O Brasil visto através da MPB

A professora Liv Sovik lança “Aqui Ninguém É Branco”, em que analisa o país por meio da música

por: João Pombo Barile

“Aqui Ninguém É Branco”, novo livro que a suíça Liv Sovik acaba de publicar pela editora Aeroplano, traz de volta a discussão da convivência entre as raças no Brasil. Num país onde ninguém se diz racista, o livro da professora da Escola de Comunicação da UFRJ cai como uma bomba ao tocar numa questão essencial: afinal, por que o brasileiro cultua tanto a mestiçagem? Desde Gilberto Freyre – e seu sedutor discurso de “Casa Grande e Senzala” -, nos acostumamos com um certo discurso que afirma uma certa harmonia entre as raças.

 

“Será?”, parece questionar o livro de Liv. Através do estudo de lugares-comuns na música popular brasileira e da maneira com que a grande imprensa nacional trata a questão entre as raças, Liv conseguiu desmascarar o cínico discurso de parte da elite brasileira que gosta de dizer que “todo mundo tem um pezinho na cozinha”.

 

Gostaria que você começasse falando um pouco sobre como surgiu a ideia do livro. A obra pode ser tomada como uma interpretação do Brasil?

 

“Aqui Ninguém É Branco” acabou sendo uma interpretação do Brasil. Fala mais das singularidades brasileiras, mas o meu ponto de partida são as surpresas, desconfortos, incompreensões, prazeres e dúvidas com relação ao que vivo e observo. O primeiro impulso foi pensar o afeto como característica identitária brasileira, “somos um povo afetivo”. Isso convergiu com um questionamento sobre um certo silêncio no Brasil sobre o papel dos brancos nas relações raciais. O afeto permeia tudo quanto é discurso sobre as relações sociais, inclusive, ou talvez até mais, quando se trata de partes desiguais. Também me interessava pela forma em que o conhecimento se constrói a partir de impactos afetivos, e a experiência afetiva motiva o consumo cultural – sobretudo a escuta musical. São essas inquietações, junto com o fato que de aqui fui ficando, que geraram a necessidade de escrever, de uma forma não ingênua, meu “isso aqui ô ô”. Desde o doutorado tento pensar o Brasil através da música. A música popular e sua interpretação constituem toda uma tradição de pensar o país. Pensar junto e a partir dessa tradição é uma delícia, pois a música sempre está presente no consciente e no inconsciente, sempre escapa às categorizações mais duras das ciências sociais.

 

O professor e compositor José Miguel Wisnik gosta de assinalar a peculiar relação existente no Brasil entre a canção e o pensamento. Só para ficarmos nos dois maiores exemplos: Caetano Veloso escreveu “Verdade Tropical” e Chico se transformou num escritor de verdade. Este é um fenômeno só brasileiro mesmo?

 

Me parece que é, sim, um fenômeno brasileiro, a maneira em que esse pensamento permeia a cultura.

Impressiona o estrangeiro o quanto as letras de canções populares fazem parte do dia a dia dos brasileiros. Frases soltas de canções até muito antigas são citadas no cotidiano como provérbios, comentários ou expressões de carinho e amor. A memória musical de minha cultura de origem é marcada pela cronologia: lembramos o momento em que ouvimos e dançamos para uma música, é onde e com quem estávamos que conta, e cantamos juntos para lembrar melhor. Aqui, parece, a canção, como forma de apreender a vida, de pensá-la, é da cultura comum e é sempre atual. O que vem me interessando é entender como esse fenômeno pode ser lido quando os grandes pensadores da canção – Chico, Caetano, Gil e outros – já são mais do passado do que do presente. Para onde foram a sutileza, complexidade e delicadeza do diálogo entre composição, cinema, literatura, em época em que o foco é funk e rap?

 

Como enxerga essa diferença?

 

Parece que existe uma explosão e dispersão da inteligência musical popular, de tal maneira que o artista e sua obra já não são o enigma a ser interpretado em contexto erudito e popular. O que precisamos entender melhor, talvez, é a forma em que a música está no público, está viva nele quando está junto ao artista. Há continuidades entre o que me parece sempre um milagre brasileiro, de milhões de pessoas cantar de cor letras do vasto repertório nacional, e a reiteração espontânea das quilométricas narrativas do rap. Mas de onde vem isso, para onde vai?

 

Você sempre se manifestou a favor das cotas para negros nas universidades brasileiras. Por quê?

 

Sou a favor das cotas para romper com a desigualdade no tranco, já que o andar da carruagem não aponta para um avanço democrático nesse aspecto. É óbvio que precisa investir ao mesmo tempo na qualidade nos outros níveis de ensino público. Vou falar da universidade, que é o que conheço. Minha experiência em sala de aula não me convence de que a exclusão dos negros do ensino superior em nome de uma suposta qualidade e mérito em que ganham as camadas majoritariamente brancas seja uma boa forma de seleção. Eu acredito que as cotas têm que ser aprovados para começar um processo de democratização racial que está mais do que atrasado. Quando a universidade pública brasileira, com sua tradição de pensamento social, for sentida e entendida como terreno também de negros, não há como prever a guinada que se poderia dar, no sentido de um debate mais relevante para a sociedade como um todo. Nas ciências sociais, pelo menos, a excelência depende dessa relevância.


Prefácio

O escritor Silviano Santiago é autor do prefácio de “Aqui Ninguém É Branco”
“O talento e a originalidade da ensaísta Liv Sovik estão no fraseado. No tópico em questão, o da mestiçagem consensual do ser brasileiro, o fraseado sobre a branquitude é o milagre de Lázaro. Ressuscita o europeu marinheiro, colonizador, escravocrata, latifundiário, capitão de indústria, banqueiro, capitalista etc., com a intenção de falar de seu silêncio e da sua invisibilidade.”

 

 

“Brasileiro ainda é um corpo em movimento”

 

Neste trecho da entrevista, Liv Sovik discorre sobre a visão que os estrangeiros têm do Brasil e da modernização do racismo no Carnaval baiano, onde as estrelas do axé são todas brancas. Confira a seguir.

 

Em uma entrevista recente, você afirmou: “No Brasil, sempre se fala muito dos negros e se esquece que os brancos existem e detêm o poder. A visão do estrangeiro sobre o Brasil é muitas vezes simplória. Se o Brasil não é mais simplesmente praia e biquíni, ainda existe uma série de pressupostos sobre o que seja o Brasil”. Na sua opinião, qual é a visão que os estrangeiros têm hoje do Brasil? Em época da internet, viagens internacionais baratas e migração de brasileiros para o exterior, o jovem estrangeiro tem informações sobre o funk, a capoeira e outras expressões da cultura brasileira atual. Mas diria que, para o estrangeiro, o brasileiro ainda é um corpo em movimento, dança, é musical, esportivo e ligado aos morros cariocas. É negro, ou pelo menos não é branco, e, como o pessoal de biquíni era também, um pouco inconsciente. É ligado ao ser mais do que ao pensar. O Brasil é um lugar em que “se ousa” ir, é um desafio. A ousadia tem a ver com a reputação de violência, que chegou à consciência global através do filme “Cidade de Deus” e, antes, pelas notícias das chacinas da Candelária, do Carandiru e do Vigário Geral. Mas também o Brasil agrada muito, pela amabilidade e o calor humano dos habitantes, a forma como todos aparentemente convivem, reafirmando a imagem do país como democracia racial.

 

O sociólogo Boaventura de Souza Santos chama a atenção para os “perigos” da obra de Gilberto Freyre, que suavizou e deu um certo charme à escravidão brasileira. O seu ensaio sobre Daniela Mercury me lembrou muito as ideias de Boaventura. E fiquei pensando: não deixa de ser curioso que começando em Daniela, passando por Ivete Sangalo e chegando em Claudia Leitte, a chamada axé music parece ter obsessão pelos brancos. Por que todas as cantoras que fazem sucesso na grande mídia são sempre branquinhas? É verdade. No caso do Carnaval de Salvador, assistimos a uma modernização do racismo, com as novas tecnologias de transmissão televisiva. Até há uns 15 anos, a gente assistia na TV à multidão e ouvia toda uma massa sonora, indistinta, vinda das ruas e dos trios. Hoje ouvimos e vemos de perto cantores e sobretudo cantoras com seus equipamentos e séquitos. Quando surge uma estrela, a estética dominante a quer branca, colada na cultura negra: Daniela, Carla Perez, Ivete Sangalo, Claudia Leitte. É sintomático que, quando Margareth Menezes, estrela negra equivalente, montou seu trio, referiu-se a uma tradição de rua mais democrática, dos “Mascarados”, e desfilou sem corda nem cordeiro.

 

Em 2003, você escreveu: “Nós resistimos a acatar a liderança negra, a ficar na sombra em um grupo racial misto e entender que não detemos o principal poder de mobilização política nesse tema”. O negro na liderança incomoda o branco brasileiro? Sim, em todos os níveis. E são mil formas sutis e não sutis, no cotidiano, de demonstrar isso, tentando colocar o negro “no seu lugar”. Estava dizendo, no texto que você cita, que o branco não aceita que negros liderem nem quando se trata de seus interesses como negros. Ou seja, não combina com seu imaginário de protagonista. Por outro lado, a liderança negra incomoda brancos em outras partes do mundo também. Exemplo disso é a resistência à presença de Barack Obama na Presidência dos Estados Unidos. Parte da sociedade norte-americana avançou, através de práticas institucionais e sociais inclusivas, mas uma parte tem raiva de ter um presidente negro.

 

“Estou dividida entre os prazeres de ser incansavelmente servida, ainda que de modo displicente, por todos os nossos pequenos negros, ou fazer uns ovos mexidos direito para mim mesma”. O trecho da carta escrita pela poeta norte-americana Elizabeth Bishop para o escritor Robert Lowell, na década de 1950, quando ela morava no Brasil, resume a estranheza que alguns estrangeiros sentem quando tomam contato com essa instituição nacional chamada empregada doméstica. Te pergunto: você sofre algum tipo de “tentação” em se tornar brasileira nesse sentido? Aprendi a lidar com uma faxineira, mas, quando cheguei ao Brasil, teria preferido uma relação de trabalho contratual, mediada unicamente por dinheiro. A relação patroa-empregada é aquela em que você é mais brutalmente inserida na estrutura social brasileira. A relação é de uma complexidade infinita, demora anos para dominar as regras básicas de troca. São muitas considerações: o teor do respeito à pessoa e o problema inicial da autoridade, a carência e a percepção comum da desigualdade abismal, o quanto e como você a “ajuda”, o problema de “ser de confiança” e da total intimidade que a pessoa tem com sua vida, intimidade que é involuntária e não é recíproca… Hoje sou uma patroa quase brasileira, me parece, aprecio o esmero da minha faxineira e o fato de que não preciso fazer o trabalho braçal da limpeza. Mas ainda tenho resistências a essas relações com prestadores de serviço, seja de manicure ou de conserto de coisas em casa. O valor americano de fazer ovos mexidos por conta própria, cuidar independentemente de si, é muito forte.

Fonte: O Tempo

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