O canto dos escravos

O Canto dos Escravos

Canto IX

I

Hoje, em coisa de segundos, me lembrei de uma menina, vi tristeza no meu mundo e fui invadido pela África, em forma de vissungo.

por Hugo Fanton

Em 1982, Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca se reuniram para dar nova vida a cantigas ancestrais de negros e negras benguelas, de São João da Chapada, MG. Entoados no cotidiano daquela gente, no trabalho nas minas, em rituais mágicos, festas ou mortes, os vissungos envolviam mundos distintos, terra daqui e de lá, o sobrenatural, a ancestralidade, os que ainda vivem perpassados em notas, por gente, as vozes do além, do lado de lá do mar ou da vida. Mundos sempre a se tocar, no sofrer.

Ei ê lambá,

quero me acabá no sumidô

quero me acabá no sumidô,

lamba de 20 dia

ei lambá, quero me cabá no sumidô —

Ei ererê.

O trabalho duro, lamba, motiva o negro pedir a morte. No vissungo, o sofrer vai daqui pra lá, de lá pra cá, e ouvindo o canto vou sentindo um dizer de Mia Couto: “Hoje eu sei, África rouba-nos o ser, e nos vaza de maneira inversa, enchendo-nos de alma”.

O canto foi registrado em 1929 por Aires da Mata Machado Filho, filólogo que queria recolher vestígios de um dialeto banto. Mas da lingüística à alma, tem o longo caminho da poesia repousada na vida, vivida agora. E de lá pra cá, é lambá que me traz o caminho não vivido, sentido.

II

Neste momento, cantigas são entoadas por negros e negras no Rio de Janeiro. Também em São Paulo, e talvez por toda parte. Num lugar de pobreza reservada para negros, de repressão reservada para a pobreza, lambá tem cara, que não muda. O capitalismo se desenvolve, sistema político, organização de serviços e a expressão de deveres e direitos mudam, mas lambá não muda, é dos negros, como os cantos.

Numa entrevista que fiz em Heliópolis, um cantador negro me entoou letra que escrevera: “camelô também é trabalhador. Vende sua mercadoria, pra ganhar no dia-a-dia, no centro, bairros e vilas, na correria. Quando começa é mó sufoco: olha o rapa! Quem moscou, vacilou, teve suas coisas levadas, no rosto, vejo o desânimo, não levou nada pra casa. Infelizmente é assim, o caçador e a caça, na guerra de quem vive suando a camisa, é a batalha do pobre pelo pão da nossa família. Trabalhador, camelô, já acordou, cinco da matina, é o cotidiano”.

É lambá. Aos olhos do Estado, crime. E novamente no canto, África vai nos enchendo de alma, enquanto é sufocada. No canto dos escravos, consumo sentimento e cantador definha. É canto negro, vivência negra que me invade. E caminho na hipocrisia, na tristeza de que o sofrer dele pouco muda minha alegria.

III

Hoje, em coisa de segundos, me lembrei de uma menina, vi tristeza no meu mundo e fui invadido pela África, em forma de vissungo.

A menina me veio por texto. Escreveu sobre a criação do mundo pelos Desana. Conta que Baaribo espalhou pelo pano de tururi a terra de nascer gente, a terra da gente abrir os olhos, a terra de formar gente e a terra de virar gente. Os Desana explicam as diferenças no mundo em formação: “quando os primeiros brancos chegaram na região, os nossos avôs já sabiam que eles vinham para fazer a guerra, porque Yebá-gõãmi havia dito para o ancestral deles ganhar a sua vida pela violência”.

A menina que me apresentou os Desana é a mesma que me apresentou os vissungos. É menina que vive num mundo de brancos, negros e indígenas, e que entende do sofrer.

Nesses tempos de guerra e cantoria, mudou a racionalidade, mudaram as ações e as legitimidades. Bíblia muda pra lei, chicote muda pra algemas. Mas África continua a encher nossas almas, e Yebá-gõãmi continua explicando nosso mundo. –hugo fanton (cc)

Fonte: Latitudesul

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