O caráter à flor da pele

Fisiognomonia tem chance de sólida reentrada na cena pública do país

FONTEFolha de São Paulo, por Muniz Sodré
O professor Muniz Sodré (Foto: Lucas Seixas/Folhapress)

Mais em opiniões populares do que em textos, há algum consenso quanto à correspondência entre traços faciais de figuras do poder e caráter aberto ao desvario e à corrupção. Diz-se que as inclinações morais lhes transparecem nos rostos, ou, numa expressão corriqueira, que “estão na cara”. Mas já houve para isso uma designação culta: fisiognomonia.

Trata-se nada mais nada menos de “leitura facial”, ou seja, a hipótese, aceita no passado por muita gente sisuda, de que na estrutura corporal do indivíduo haveria legíveis marcas psicológicas e morais. Imperadores de antigas dinastias chinesas levavam tão a sério a leitura desses sinais que por eles escolhiam seus ministros.

O fenômeno chegou à modernidade. Shakespeare faz Lady MacBeth dizer ao marido: “Teu rosto, meu nobre, é um livro em que os homens podem ler coisas”. O que se lia? “Falso, sangrento, enganador, luxurioso.” A literatura romanesca é pródiga nas descrições em que as distintas partes corporais revelam características de comportamento, e não apenas visuais, mas táteis: até o medo exalaria um odor específico.

Em outros tempos de estudos jurídicos, ainda circulavam as ideias oitocentistas de Cesare Lombroso, para quem zigomas acentuados, bossas cranianas e maxilares protuberantes indicavam tendências criminosas.

A fisiognomonia sempre foi a ciência prática de caricaturistas. Agora ela tem chance de uma insólita reentrada na cena pública brasileira, em meio à crise ético-política que turva a legitimidade do poder.
Sumindo a credibilidade dos aparatos de Estado, vazam fisicamente os traços de caráter dos dirigentes.

A afecção visual pode ser tão concreta quanto a mental. Um traidor e golpista, agente das sombras, é figurado como vampiro, algo a se temer. Um delirante predador parlamentar, como ratazana voraz. Quando se põe lenha na fogueira do autocratismo, a contrapartida da imaginação coletiva é a representação por arquétipos críticos da encarnação do poder.

Livre para interpretar, o povo “lê”, sentindo. Foi assim que um John Kennedy jovial, queimado de sol e maquiado venceu no famoso debate televisivo um Richard Nixon suado e sombrio (26/6/1960). Houve quem achasse melhor a fala de Nixon, mas a cara de Kennedy, imbatível, deu início à era da telegenia.

Entre nós, é hoje notável a força negativa do flagrante defeito: no dirigente que mente contra todas as evidências, o arquétipo da cara de pau despudorada traduz a falha moral. A troca da palavra pelo palavrão, do sorriso pelo deboche, se distorce à flor da pele como, no mamulengo nordestino, os nervos do mau-caráter se mostram à flor do pano. Isso marca ponto no placar de jogo do povo, no qual a fisiognomonia também chuta em gol.

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