O caso Gabriel Hoytil Araújo: Um corpo estendido ao chão e o misterioso caso do racismo que não existe, mas que mata a juventude negra aos montes!

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

Está lá mais um corpo estendido ao chão, inerte, sem vida… Mais um jovem negro a tornar-se estatística, vítima inocente de nosso racismo genocida que parece não se cansar de seu apetite de morte e destruição.

Gabriel Hoytil Araújo, vendedor de águas, voltado a auxiliar no sustento de sua casa em que residia com sua família no bairro do Jabaquara na capital paulista… Transformado em carcaça vazia, tombado, rosto desfigurado… Assassinado com a marmita em mãos, sem chance de defesa, julgado, condenado e executado sem direitos a defesa ou recursos, por representantes de um Estado em que oficialmente não existe pena capital. Mais uma vida ceifada e o poeta continua cantando que a “periferia segue sangrando até quando?

Como bem relatado por sua mãe e vizinhos, um jovem que em nada apresentava “situações de perigo” a sociedade, muito pelo contrário, era um representante do que poderíamos compreender enquanto um empreendedor, no sentido desse conceito ter sido despolitizado e utilizado enquanto referência de quem “corre atrás de seus sonhos” e “não fica reclamando da vida!”. O que de assustador e terrível essa pessoa simbolizava para sofrer tamanha desgraça? Morrer enquanto almoçava, em sua pausa da labuta diária em querer viver a vida sem problemas e longe de qualquer confusão… 

Ah, mas em uma sociedade fundada nos ferros quentes e pólvora do escravagismo e racismo, como a brasileira, uma pessoa negra nunca é vista ou compreendida em sua humanidade, mas sim enquanto coisa ou corpo codificado, que pode ser interpretado e manuseado ao bel prazer de nossos cotidianos históricos e sociais, em especial por nossas elites ou daqueles que operam enquanto seus ideólogos ou protetores. Daí sua execução sumária, sem justificativa plausível, enquanto consumação de nosso racismo estrutural que criminaliza de antemão a pessoa negra enquanto potencial alvo a ser atingido e eliminado, desumanizado de qualquer direito a uma vida digna!

Fora o absurdo do assassinato físico, segue-se a praxe dos executores envolvidos em dar legalidade a sua ação de morticínio, realizando nova execução, dessa vez da “condição moral” do envolvido o situando enquanto envolvido com o tráfico de drogas que entrou em combate com os “representantes da lei e da ordem”, sendo por isso morto em ação legítima e justificada. Mas que ação é essa que dois policiais preparados em técnicas de combate, defesa e desarme, não conseguiram conter um jovem que – segundo eles mesmos relataram – foi surpreendido pela ação repentina, mas conseguiu se desvencilhar da tentativa de rendição que lhe foi imposta, procurando nesse processo sacar e direcionar de arma, até então escondida, contra os agentes do Estado, sendo por isso alvejado diretamente ao rosto, tudo isso com o seu almoço em mãos, acondicionado em uma marmitex que terminou tingida em rubro por seu sangue esparramado, com o impedimento de qualquer tentativa de socorro a ele.

Ele morreu sem chance de se defender. Meu filho nem comeu a marmita. Já que estavam ali para combater o tráfico, poderiam levar para a delegacia. Esse é o trabalho da polícia, não chegar e matar. Por que mataram o meu filho?”

(SILVA, 2021)

O processo de sempre se deu, a grande mídia em sua postura de indignação ante ao fato de mais um jovem negro que se faz tombar por nossa violência urbana e estrutural. Como se ela não fosse um dos elementos chaves da existência e reprodução dos mesmos, sempre à espera do próximo caso para estampar suas manchetes e likes, para dar verniz ao seu “compromisso jornalístico” contra o racismo ou qualquer forma de violência. Quando na prática também se beneficia desse sistema que aparentemente postula combater. Indignação falaciosa perante as dores e mortes negras, além da massificação destas para obtenção de audiência, além da eterna culpabilidade das vítimas, que acabam assim por serem duplamente assassinadas. 

Eis o padrão da sociedade brasileira quando acaba presente a um fenômeno histórico (racismo) ao qual não possuí hábito´- ou seria falta de interesse? – em contestar e muito menos combater de maneira sistemática. É sempre buscado ser ignorado, ou mascarado, e quando não, tratado o mais superficial possível, como se fosse um fato esporádico em sua casualidade e não endêmica enquanto representação direta de nossa sociedade racista e socialmente excludente. Nem que para isso precise recorrer a tornar público atos criminais cometidos ou imputados as vítimas, como se tais fatores justificassem o assassínio destas pessoas. É a utilização do velho ditado – preconceituoso – de que “bandido bom, é bandido morto” para assim negar a mínima possibilidade de qualquer traço de empatia aos vitimados ou de revolta ao ocorrido.

Vivemos uma eterna novela, daquelas de roteiro nada original, sempre usual em sua narrativa de perpetuar nossos preconceitos e piores referenciais, em que as mortes negras são sempre as “cenas dos próximos capítulos” a capturar audiência – mórbida e alienada – para que ao final tudo permaneça como está! Mudam-se os corpos, mudam-se os rostos das mães, mudam-se os nomes envolvidos, mas os atores padrão dessa nossa tragédia nacional permanecem os mesmos, afinal de contas a “carne negra é a mais barata do mercado”. Sendo por isso o mais triste, quase no sentido de máxima impotência perante quadro tão desoladora, é que este texto – trocadas os nomes dos envolvidos e as suas referências geográficas – poderia ser publicado todos os dias sem precisar de nenhuma reparação ou alteração mais aprofundada, pois o que se evidencia ser fator comum de nossa sociedade, de nosso cotidiano social é o extermínio sistemático da população afro-brasileira, em especial de sua juventude masculina.

Sistema cruel, podre e canalha, que nos mata e desumaniza impunimente a séculos, cotidianamente, e que se porta como se não tivesse nada haver com tal realidade, como se estivesse literalmente acima do bem e do mal das relações sociais e culturais que dão forma e alcance a nossa sociedade estruturalmente racista. Em que o desejo de Fabiana Hoytil da Silva, mãe do Gabriel, não seja nem mais recorrente, tal qual um mantra dolorosamente repetido ao infinito, que se perde aos ventos de nossa indiferença: “Eu só queria ter o meu filho de volta” (SILVA, 2021).

Mas esperar o que de uma sociedade em que se naturaliza o racismo e se condena quem contra ele se insurge? Em que as vítimas de violências físicas e psicológicas são culpabilizadas pelo seu próprio sofrimento? Ou em que o escravagismo é romantizado e enaltecido como traço de nossa suposta amorosidade civilizatória? Em que o racista são sempre os outros? Para assim nada ser discutido e problematizado de fato, para toda ordem social permanecer como sempre foi, com mais corpos negros continuando a serem tombados, aos montes, estendidos ao chão, com seus destinos interrompidos mortos por um racismo que dizem não existir nas terras brasilis, mas que continuam a nos matar dia a pós dia! Será que ainda resta alguma dúvida de que somos uma sociedade de morte? De que buscamos sobreviver em meio a um fracasso civilizatório sem precedentes? 

Um país tão sombrio, uma realidade tão tenebrosa, que escrever um texto que abordasse a não mais ocorrência desse genocídio soaria como um exercício de tão difícil imaginação tal qual fosse utopia que nunca se realizará? Sendo a história de vida e morte do Gabriel, mais um exemplo do misterioso caso do racismo que não existe, mas que mata a juventude negra brasileira aos montes! 

Racismo esse que não só existe, como nos mata e se alimenta de nossos corpos e almas! Fazendo com que as lágrimas de nossas mães continuem a cair… Gerando um mar de dor e desespero que parece não ter fim… 

Referência Bibliográfica:

BARRETO FLHO, Herculano. ‘Meu filho nem comeu a marmita’, diz mãe de jovem negro morto pela polícia. In: https://www.geledes.org.br/meu-filho-nem-comeu-a-marmita-diz-mae-de-jovem-negro-morto-pela-policia/, acessado em 26/10/2021.


Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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