Na metade de 2016, o relatório da CPI Senado sobre o Assassinato de Jovens no Brasil apresentou um número alarmante: todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. Fazendo a matemática desse contingente (que contabiliza os ditos pretos e pardos) são 63 morte por dia, uma a cada 23 minutos. Assim que o relatório foi lançado, muito se questionou sobre a precisão e autenticidade do levantamento.
Por Douglas Freitas Do Nonada
A mescla entre pessoas que se declaram pardas e as que se declaram pretas; as causas dessas mortes e a desatualização dos fatos: o Mapa da Violência fazia menção ao ano de 2012. Mas, apesar desses equívocos, foi nesse momento em que o genocídio dos jovens negros foi exposto para um grande público.
Há quanto tempo isso acontece, sem que ninguém interfira? Dizer que 77% das mortes diárias no país são de jovens negros é muito importante sim. Inclusive, é fundamental para que esse quadro pare de se repetir. Em 14 de maio de 1987 esse mesmo episódio aconteceu. Júlio César de Melo Pinto (1957-1987) foi morto por ser negro, por se enquadrar no perfil que a sociedade considera perigoso, suspeito, violento. E isso aconteceu em Porto Alegre, cidade negra que já teve o segundo maior Carnaval do Brasil, cidade que tem a segunda maior concentração de religiões de matriz africana no país, cidade que deu início ao 20 de novembro.
Todo dia a mesma história
Na última quinta-feira (11), a história de Júlio César foi apresentada na Cinemateca Capitólio por meio do documentário “O Caso do Homem Errado”. Era o pré-lançamento do projeto que demorou seis anos para chegar à telona e teve uma sessão com lotação máxima, 174 lugares. Tem direção, roteiro e pesquisa da jornalista Camila de Moraes. Durante os 76 minutos de duração, a história oral é utilizada como narrativa predominante no longa. São relatos de personagens deste caso, como Ronaldo Bernardi, fotógrafo; Waldemar de Moura Lima (Pernanbuco), professor; Paulo Ricardo Moraes (Baiano), jornalista; Jair Krischke, ativista dos Direitos Humanos; Luiz Francisco Correa Barbosa, ex-Procurador da República, e Renato Dornelles, jornalista.
Por diferentes óticas, tomamos conhecimento de que acontecia um assalto em um supermercado na avenida Bento Gonçalves, zona leste da cidade. A Polícia Militar foi avisada e chegou no local enquanto os assaltantes ainda estavam dentro do mercado. O fotógrafo Bernardi também conseguiu chegar a tempo. Houve uma concentração de curiosos na frente do estabelecimento e entre os populares estava Júlio César. Ele tinha um histórico recente de convulsões, e com o tumulto, teve um ataque epiléptico.
Os assaltantes fizeram duas crianças reféns para tentar escapar do local, porém entraram em confronto com a polícia. Eram apenas dois assaltantes. Com a confusão, alguém gritou que Júlio César — que estava no chão com problemas de saúde — era um dos envolvidos no delito. Sob os flashes de Bernardi, os policiais pegaram ele, bateram nele e o levaram sangrando para a viatura. Vendo isso, o fotógrafo foi às pressas para o Hospital de Pronto Socorro para registrar a chegada de Júlio César. Os PMs chegaram no HPS meia hora depois da saída do mercado e a foto que Bernardi pode fazer foi de Júlio César morto, com dois tiros.
Júlio César foi confundido, foi dado como suspeito, foi julgado, foi agredido, foi sequestrado e foi executado. Porque estava passando pelo mercado próximo de sua casa, porque se juntou a um aglomerado de populares, porque tinha o “perfil” dos envolvidos, porque era negro. O caso do homem errado ganhou notoriedade na época, pelo fato de ser uma cobertura de um jornal grande, a Zero Hora, e pela posição que Júlio tinha dentro do movimento negro de Porto Alegre.
Seus amigos, Pernanbuco e Baiano fizeram de tudo para que houvesse justiça com o companheiro Boneco (apelido de Júlio César). O movimento negro tem voz ativa neste caso. Os jornalistas conseguiram chegar aos policiais criminosos devido ao abastecimento de informações da rede de pessoas que Júlio César tinha. Se não fossem essas variáveis, esse caso talvez seria uma nota em jornal popular da época — que provavelmente celebraria o êxito policial, com a morte dos assaltantes.
Podia ser qualquer um
Poderia ser comigo, com o meu pai, com meu tio, com meu sobrinho, com meu irmão, com meu filho, com meu neto. Poderia ser com qualquer um que estivesse na mesma posição de Júlio César. E ainda poderia ser alguém sem presença no movimento negro, e sem registro da imprensa. Mas a pergunta levantada por Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), no documentário deve ser posta: existe o homem certo?
O nome “Caso do Homem Errado” ficou rapidamente popular entre os jornais e, logo, entre a população. Entretanto, esse nome nos faz crer que, sim, um jovem negro deve ser morto quando uma ocorrência dessas acontecer. O perfil do negro como um ser violento e uma ameaça para a sociedade não deixou de figurar na mente de muitas pessoas, não só em 1987, como em 2017.
Não era para ser assim, mas a luta do movimento negro — em qualquer parte do mundo — é por um direito básico, o de não ser tratado como ameaça, de que a sua vida tem valor. Foi assim nos Movimento Civis Americanos nos anos 1960, quando a bandeira mais carregada pelos protestantes dizia “I Am a Man” (Eu sou um Homem). É hoje com o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) nos Estados Unidos, após as sucessivas mortes no país. E no Brasil, tudo se repete. Ao mesmo passo que os americanos tiveram Emmett Till (1941-1955) e Trayvon Martin (1995-2012), nós temos Wesley Castro (1990-2015), Wilton Esteves Domingos Júnior (1995-2015), Cleiton Corrêa de Souza (1997-2015), Carlos Eduardo da Silva de Souza (1999-2015), Roberto de Souza Penha (1999-2015) e Cláudia Silva Ferreira (1976-2014) e muitos outros, por dia.
Por esses motivos, faz-se necessário demonstrar indignação (que muitas vezes beira à raiva) desse absurdo. Antes da sessão no Capitólio, os integrantes da produção do documentário e do movimento negro fizeram uma marcha no Centro de Porto Alegre. Com cartazes que levavam nomes de jovens negros mortos ou que estão em processo de (in)justiça, o protesto foi da Esquina do Zaire até a Cinemateca. Apesar de não ter a participação de uma massa, quem estava na parada de ônibus — principalmente as pessoas negras — tinha consciência da mensagem da marcha: Vidas Negras Importam.
A dor de quem fica
Por trás de todo esse contexto, de violência com jovens negros, existe o lado de quem fica. Uma morte precoce mexe com a estrutura física e mental de uma família inteira. E o documentário não esquece isso. Ele mostra o lado de mães, como o da jornalista Vera Daysi Barcellos, que diz ter medo todos os dias de que seu filho não volte para casa. Mostra a força da mãe de Júlio César, Dona Maria Sebastiana, no discurso de abertura na audiência com o Governador do Rio Grande do Sul, na época, Pedro Simon. Ela disse que o governador entenderia a dor dela, por também perder um filho, mas que havia uma diferença: ele sabia o que tinha acontecido com seu filho, ela não.
E, principalmente, o documentário mostra a perspectiva de Juçara Pinto, a esposa de Júlio César. Com 24 anos em 1987, ela demorou três dias para saber o que tinha acontecido com seu marido. O assassinato foi em uma quinta-feira. Na sexta-feira, Juçara tomou coragem de ligar para o trabalho de Júlio, porque seria uma vergonha dizer à família que seu marido não dormira em casa, até então. Com mais uma noite sem notícias, ela mandou um telegrama para a família de Júlio que morava em Viamão. Só com a chegada de familiares para ajudar na busca, ela ligou para a polícia e prestou a ocorrência de desaparecimento. Por causa da desconfiança no outro lado da linha, Juçara entendeu o que tinha acontecido com seu marido.
O relato de Juçara no documentário prende a atenção do espectador. Pela simplicidade na fala, pelo discurso de alguém que carrega a dor da perda, mas quem seguiu a vida como pôde. Em diversos momentos do depoimento dela, é normal se perguntar, internamente: “nossa, olha pelo o que ela passou. Será que ela vai chorar? Não, acho que ela já deve ter chorado muito. Talvez sozinha, para que ninguém veja”. Juçara fala que sua vida parou depois do assassinato, mas em seguida ri com a hipótese de que estaria casada até hoje com Júlio César, caso nada tivesse acontecido. Um dos momentos mais fortes do relato, é quando ela conta que foi a um desfile no Carnaval, anos depois, e entrou em pânico por causa de uma aglomeração. Um policial chegou a contê-la e, assim que ele a tocou, ela gritou: “Tira a mão de mim. Vocês não vão fazer comigo o que fizeram com o Júlio César!”. E como ela mesmo conta, isso foi natural, não foi pensado, apenas saiu. O tumulto parou e todos se assustaram na hora.
E como o casal não teve filhos, ela optou por continuar assim. Todavia, a ligação que Juçara tem por criança é descomunal. Uma das características de uma comunidade pobre é a proximidade entre os vizinhos. Ao ponto de uns cuidarem das crianças de outros, formando um família de criação. Juçara ajudou a criar muitas e muitas crianças em Porto Alegre, ela fez com que mais de 30 pessoas (inclusive membros da minha família) não fossem para o mundo do crime, se perdessem nas drogas. Ela abasteceu emocionalmente esses jovens, ela moldou muitas vidas.
Estamos em 2017 e ela ainda não foi indenizada. Quanto aos envolvidos na morte de Júlio César, os tenentes da BM João Luis Clavíjio e Sérgio Luiz Borges foram condenados a 14 anos em primeira instância e recorreram. Os cabos da BM Paulo Souza Melim e Carlos Ribeiros dos Santos; os soldados da BM João Carlos da Rocha, Dair Osvaldo de Freitas, Volmir Gambarra e Jorge Jesus Gomes foram condenados a 12 anos em primeira instância e foram expulsos da corporação. 12 policiais foram condenados em primeira instância, porém todos eles recorreram em liberdade. No final, apenas um oficial, o Sérgio Luís Borges, cumpriu pena. Foi uma vitória, mas até que ponto?
Até quando isso vai se repetir? Vai ser necessário surgir mais quantos? Foi o Júlio César. Foi o Amarildo (1965-2013). Foi o Sandro Barbosa (1978-2000). E o Rafael Braga tá indo para o mesmo caminho. Negros estão sendo mortos aos montes no Brasil. E isso é racismo, tudo é sim racismo. E o problema está em lembrar do racismo quando mais um negro morrer. O racismo é estrutural, é institucional, é velado — para quem não quer enxergar. O racismo está em muitas esferas, para não dizer em todas. Racismo é crime. Mas esses dias eu li uma frase que sintetiza o grande problema: “O único crime que se resolve com um pedido de desculpas, no Brasil, é o racismo.”
“O Caso do Homem Errado” ainda está em processo de conclusão. Alterações no longa foram feitas pelo feedback na primeira sessão, realizada em fevereiro. O mesmo acontecerá agora, o documentário vai para uma bateria de festivais nos próximos meses e a sua previsão de entrar em cartaz, nacionalmente, é para o início de 2018. Confira mais fotos da noite do pré-lançamento: