O colorismo é um assunto nosso?

FONTEPor Gabriela Bacelar, enviado para o Portal Geledés
(Ilustração: LINOCA SOUZA)

Vamos pensar em uma perspectiva histórica. A Democracia Racial é uma ideia (teoria, mito, imagem…) que nos remete, automaticamente, a Gilberto Freyre. Isso porque, embora ele não tenha sido o primeiro a pensar o Brasil como um país sem barreiras de discriminação, conseguiu vender essa imagem internacionalmente com o peso da autoridade de um indivíduo branco intelectualizado e com conhecimento de dentro da casa grande, que lhe ofereceu riqueza de detalhes para a obra “Casa Grande e Senzala”.

Hoje temos ao nosso favor o legado de um esforço político e intelectual enorme dos pensadores negros, que nos permitiu olhar para a “verdade” da Democracia Racial pelo retrovisor. No século XX não era bem assim. Ao defender a prática de miscigenação e a ideia de um “paraíso dos mestiços” em detrimento das teorias que os condenavam como degenerados (os mulas, como se registra a etimologia da palavra “mulato”), Gilberto Freyre criou para si próprio e para todos os brasileiros o honroso título de antirracista! E isso caiu muito bem, afinal como nos diz Florestan Fernandes, temos o preconceito de ter preconceito.

Então o Movimento Negro Unificado, organização de grande nome da nossa história, lá na década de 70, formulou um posicionamento que rompia com o pacto civilizatório brasileiro, o mito da mistura das três raças. Para isso, o Movimento fez uma leitura profunda da sociedade, com o apoio importante das pesquisas que surgiram com o financiamento da Unesco na década de 50, mostrando como os pretos e pardos, aqueles não-brancos de pele clara, compartilhavam dos mesmos indicadores sociais.

De lá pra cá outros intelectuais, artistas e políticos negros têm produzido dentro e fora da Academia um discurso assertivo, que denuncia o privilégio branco e o racismo que nos atinge. A Conferência de Durban em 2001 também foi outro momento marcante quando falo sobre avaliações e decisões que os movimentos sociais negros tomaram ao longo da história.

Na Conferência essas lideranças negras precisaram resolver sobre nossa prioridade estratégica do momento, formalizando então o compromisso e a necessidade de que mais negros estivessem dentro das Universidades na condição de estudantes – porque na condição de trabalhadores da limpeza ou da construção civil desses ambientes não é difícil estarmos.

Estou falando sobre tudo isso por um motivo simples: se o colorismo é um assunto de interesse amplo, precisamos novamente reunir esforços a fim de deliberá-lo. Para isso pergunto, debater colorismo nos interessa? As diferenças de oportunidades entre “pretos” e “partos” é algo escancarado do qual precisamos falar? Outra questão (não necessariamente em segundo lugar), onde nós observamos a desigualdade entre pardos e pretos? É nas escolhas afetivas que beneficiam mais as negras claras para elegibilidade de um casamento – como tenho visto muitas pessoas apontarem? Se isso se confirma, dá para extrapolarmos essa “vantagem” na constituição do matrimônio, para absolutamente todos os outros campos da nossa vida social automaticamente? Essas são só algumas das perguntas concernentes.

Como mencionei no texto anterior “O colorismo e o privilégio que ninguém te deu” , essas reflexões que compartilho são parte de uma pesquisa que desenvolvo há cerca de dois anos na Antropologia, e que nesse momento tenho o trabalho de condensar em uma dissertação de Mestrado, uma pesquisa que pensa a identidade negra dos negros de pele clara, o colorismo e o processo de heteroidentificação pela comissão de aferição da veracidade da autodeclaração étnico-racial.

No texto anterior e também nesse, compartilho de dados que essa pesquisa me deu condições de ter. Por exemplo, é um dado relevante que o volume de pesquisas acadêmicas que temos nacionalmente em torno dessas questões seja ínfimo. Praticamente todo o trabalho de pensar sobre o colorismo a partir do Brasil está nas redes sociais, nos vídeos disponibilizados no Youtube e nos textos de portais como o Geledés e o Blogueiras Negras. Essas são sem dúvidas contribuições valiosas, assim como serão aquelas que desejarem produzir conhecimento sobre isso no espaço da Academia.

Eu penso que temos condições suficientes de formalizar esse debate com indicadores sociais, teorias e metodologias de pesquisa. Isso nos ajudará a pensar se o colorismo é um debate que nos interessa e o que vamos querer com isso. Formulando em uma pergunta seria assim: depois disso para onde caminharemos?

No texto que me referi anteriormente, eu começo a falar sobre o colorismo a partir de outro lugar. Não esperava que disponibilizar esse texto me geraria outro dado de pesquisa: ao quebrar o silêncio sobre outra forma de pensar o tema, muitos feedbacks que concordavam com esse pensamento, compartilhavam de um lugar de medo – de falar. Há também outro dado: a resistência que alguns apresentam em dialogar ou tentar compreender outra possibilidade de pensar o assunto.

Apresento-me como pesquisadora porque é desse lugar que escrevo, ainda que minha experiência pessoal também se reflita. Enfrentar esse assunto é delicado, proponho um reenquadramento conceitual do colorismo num trabalho maior em construção, que requer que todos os argumentos sejam bem amarrados, explicados. Declarar sentenças que tenham coerência com os indicadores sociais é parte dessa atenção, o que me permitiu refletir sobre o “privilégio” dos negros de pele clara.

Proponho, seguindo essa linha, que todos nós pensemos sobre o colorismo desse lugar de estudo e cuidado – com o outro e com as nossas próprias palavras, o medo daqueles que me falavam revela o clima hostil que estamos lidando, do qual o termo “afrobege” é só um elemento diagnóstico.

A negritude como soma no Brasil (pretos+pardos) é uma elaboração da nossa ancestralidade política, não é uma “invenção nova”. Se a resposta pra pergunta do título é que falar sobre colorismo importa, então façamos com rigor. Esse momento reclama pela nossa ação-leitura aprofundada da sociedade, dos indicadores sociais e dos livros.

Gabriela é Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, licenciada em Ciências Sociais e professora de Sociologia da Educação Básica.

 

Leia também: 

O colorismo e o privilégio que ninguém te deu


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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