O Congo está em guerra, e seu celular tem a ver com isso

Sem atenção internacional, conflito já ceifou 6 milhões de vidas e se arrasta motivado pela exploração de minérios essenciais à tecnologia

Membro do movimento M23 fica de guarda enquanto pessoas embarcam de caminhão durante alistamento de civis, policiais e ex-membros das Forças Armadas da República Democrática do Congo - Michel Lunanga - 23.fev.25/AFP

Guerra do Congo é o conflito mais mortal desde a Segunda Guerra Mundial, mas recebe bem menos atenção do que deveria —especialmente se comparada às guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza.

O motivo não é apenas geopolítico, mas reflete como o mundo enxerga a África por lentes distorcidas. A cada ofensiva do grupo armado M23, o conflito é tratado como fruto de uma violência inerente ao continente ou um simples resquício colonial. Ambas as visões ignoram o essencial: os interesses locais, conectados a processos históricos globais.

Apesar de negligenciado, o conflito no leste do Congo tem impacto humanitário maior que guerras mais midiáticas e reflete estruturas históricas de longa duração. Durante as duas guerras do Congo (1996-97 e 1998-2003), 3 milhões de pessoas foram deslocadas. Hoje, esse número ultrapassa 7 milhões. Segundo a ONU Mulheres, o conflito atinge mulheres de forma desproporcional: rebeldes e forças governamentais usam a violência sexual em massa como arma de guerra. Muitas são escravizadas, compondo cerca de 400 mil congoleses submetidos à escravidão contemporânea. Crianças também são recrutadas para grupos armados e forçadas ao trabalho nas minas de coltan e cobalto, essenciais para nossa tecnologia.
Desde os anos 1990, a guerra e suas consequências —fome e doenças— já ceifaram cerca de 6 milhões de vidas.

Poderíamos evocar Joseph Conrad e dizer “o horror, o horror”, mas o cinismo do humanitarismo colonial é parte do problema. Multinacionais exploram os minerais da República Democrática do Congo (RDC) e lucram com a instabilidade. A extração ilegal, sustentada pelo trabalho forçado e contrabando via Ruanda, mantém o minério barato no mercado global. Ainda assim, a guerra persiste porque serve aos interesses dos próprios beligerantes.

A crise do Congo reflete como líderes do país e de Ruanda lidaram com diferenças étnicas e como chefes locais reagiram às pressões pós-coloniais. Desde o século 19, o leste do Congo foi um centro de mobilidade e comércio. Líderes locais e mercadores de Zanzibar escoavam escravizados e marfim. Nesse processo, identidades étnicas emergiram, coexistiram e entraram em conflito. Apesar da violência, muitas identidades ainda buscavam preservar a tradição regional de autonomia descentralizada baseada em alianças temporárias e personalistas. O colonialismo belga não as “inventou”, mas cristalizou desigualdades que se agravaram após a independência.

Com o genocídio de 1994 em Ruanda e a ascensão de Paul Kagame, a questão étnica no leste da RDC se agravou. Ruanda alegou proteger tutsis congoleses discriminados, mas visava consolidar influência sobre uma região rica em minérios. O conflito tomou proporções continentais, com Ruanda, Uganda e outros países liderando a ofensiva contra o ditador Mobutu, enquanto outros Estados africanos tentavam sustentá-lo. No fim, Laurent-Désiré Kabila, apoiado por Ruanda e outros países, depôs Mobutu, mas a guerra se reconfigurou e seguiu até 2003. Após relativa paz, confrontos voltaram em 2009 e 2012.

Derrotados em 2013, rebeldes apoiados por Ruanda ressurgiram em 2022, ocupando territórios e ameaçando o governo de Félix Tshisekedi.

Embora as guerras do Congo (1996-2003) tenham atraído atenção mundial, os conflitos posteriores passaram despercebidos. Mas é nesse silêncio que se sustenta uma guerra sem fim: sua continuidade favorece elites políticas locais e países vizinhos que lucram com um Estado congolês enfraquecido. Sob pressão constante, a RDC não consegue impor soberania sobre suas riquezas minerais, alimentando disputas entre atores locais, regionais e internacionais. Com seis generais brasileiros se sucedendo à frente da missão da ONU na RDC, deveríamos olhar com mais atenção para o Congo —um país com fortes laços históricos com o Brasil.

A guerra teve um começo e pode ter um fim. A destruição no leste do Congo não é um acaso geopolítico nem um conflito inevitável —é parte de uma ordem global que amplifica algumas tragédias enquanto ignora outras.

No fim, escolhemos fechar os olhos para o Congo de uma forma que não fazemos com a Ucrânia ou Gaza. Mas o conflito congolês não poderia estar mais perto de nós: ele vibra no nosso bolso e se revela quando tocamos a tela e dizemos: “Alô?”.


Marcos Leitão de Almeida – Professor do Departamento de História da USP

Adrien Ngudiankama – Fundador e diretor da Kongo Academy

Igor Matonda – Professor da Universidade de Kinshasa (Congo)

-+=
Sair da versão mobile