Primeiramente, antes das considerações jurídicas acerca do caso, faz-se necessário um breve excerto histórico.
Ao longo do período pós abolição sob fundamentos eugenistas e higienistas, o Estado Brasileiro criminalizou e reprimiu o culto sagrado de origem africana, imperioso ressaltar que ocorria nesses tempos ocorre hoje, mesmo sob a égide da constituição cidadã, o estado continua promovendo a barbárie apreendendo imagens de orixás, nkisis, ibas, ferramentas do culto ancestral, instrumentos.
De suma importância rememorar os tempos em que, legalmente, as crenças de matriz africana foram consideradas retrocesso e atraso cultural, pelo prisma hegemônico e eurocêntrico.
O biopoder, conceito apresentado por Michel Foucault, aponta que uma das funções do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer”.
Ao falar-se em morte, neste contexto, é essencial ressaltar que não se dá somente de forma física, como no caso do genocídio da população negra, o epistemicídio que silencia, anuna, subalterniza e avilta, os saberes não-hegemônicos, também é uma forma de morte. Assim, entenda-se morte como cessação completa da vida ou existência em suas diversas formas, inclusive o conjunto dos conhecimentos (des)valorados que condicionam a forma de entender e interpretar.
Nesta mesma linha, Joseph-Achille Mbembe, em sua obra “Necropolítica, ao descrever o uso de estratégias e ferramentas coloniais e hegemônicas para o controle afirma que a vida do colonizado é, em certos aspectos, uma morte em vida.
Aos recém completados 132 anos de pseudo liberdade, a população negra brasileira continua vivenciado o pagamento e a tentativa de extermínio de seus corpos e também de sua cultura, valores e religião.
Afirmar que uma jovem está sofrendo maus tratos, pelo simples fato de estar passando pelos ritos litúrgicos de iniciação do Candomblé é equivalente à retroceder mais de um século, ou seja, inaceitável.
O culto aos orixás foi criminalizado, outrora com embasamento legal e, atualmente, com fundamentos morais e ideológicos. Contudo, inadmissível que com todo o aparato vigente, o estado continue sendo utilizado como instrumento de violação de direitos. No caso em comento, ao menos, quatro representantes do estado, cada qual em sua respectiva área de competência institucional, foram mobilizados para instrumentalizar o aparato legal em prol da prática do racismo religioso.
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pela Organização das Nações Unidas em 16 de dezembro 1966, prevê que compõe o grupo dos direitos civis e políticos o exercício livre da religião, a liberdade de crença, culto e organização religiosa.
Também a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial foi ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. O referido diploma legal preceitua que é dever do estado promover e o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião.
Neste sentido destaca Raquel Cristina Santos Moura, em ” A Contribuição do Direito Internacional na Proteção do Direito à Liberdade Religiosa”:
O desrespeito aos direitos humanos, destaco a perseguição religiosa, sempre fez parte da realidade social mundial. A razão para que tal prática seja justificada é a intolerância religiosa, ou seja, a incapacidade de aceitar e respeitar uma crença diferente ou até mesmo a inexistência dela. Ao analisarmos brevemente a história da humanidade, nos deparamos com incontáveis casos de violação de direitos para defender uma religião. A título de exemplo podemos citar o Holocausto em que, durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas foram responsáveis pelo homicídio de cerca de seis milhões de judeus, bem como dois milhões de poloneses e outras quatro milhões de pessoas que foram considerados por eles “indignos de viver” (incluindo os deficientes e doentes mentais, prisioneiros de guerra soviéticos, homossexuais, maçons, testemunhas de jeová e ciganos), como parte de um programa de extermínio deliberado. Os nazistas por considerarem sua etnia e religião superior à dos judeus sentiram-se perfeitamente possuidores do direito de exterminá-los a fim de tornar a sociedade mundial mais “digna”.
O inciso VI, artigo 5º, da Constituição Federal assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
Outrossim, o parágrafo único, acrescido pela Lei nº 13.257/2016, ao artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, assegura, expressamente, ao pai, mãe ou responsáveis, o direito da transmissão das suas crenças.
Com o intuito de reprimir a discriminação e o racismo promulgou-se a Lei nº 12.288 de 2010, instituindo o Estatuto da Igualdade Racial que em seu artigo 1º prevê como fim precípuo a defesa dos direitos étnicos individuais, bem como o combate à discriminação e demais formas de intolerância.
Ainda, no que tange ao conceito jurídico adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, a discriminação é definida como toda forma distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, descendência, origem nacional ou étnica que tenha por objetivo anular anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada (artigo 1º, inciso I, Lei nº 12.288 de 2010).
No mesmo sentido o artigo 9º do Código de Conduta da Magistratura prevê que: “no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação”
Em que pese todo o arcabouço legal, há uma histórica ausência da reflexão adequada sobre o que é discriminação e sobre o que é igualdade. Somando todo o exposto, ao descumprimento da Resolução nº 1/2004 do Conselho Nacional da Educação, do Ministério da Educação, que prevê Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
O Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Habeas Corpus nº 82.424, em 2004, definiu que a construção da definição jurídico-constitucional do termo “racismo” requer a conjugação de fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram a sua formação e aplicação. O crime de racismo constitui um atentado contra os princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência.
Ante tais considerações, bem como como pelo que será exposto adiante, está posto, com clareza, o racismo religioso, instrumentalizado e estruturado com o auxílio higiênico do estado, por meio das instituições públicas (racismo institucional).
Nesse viés, o autor e professor Sidnei Nogueira preceitua em sua obra “Intolerância Religiosa” que:
“O preconceito, a discriminação, a intolerância e, no caso das tradições culturais e religiosas de origem africana, o racismo se caracterizam pelas formas perversas de julgamentos que estigmatizam um grupo e exaltam outro, valorizam e conferem prestígio e hegemonia a um determinado “eu” em detrimento de “outrem”, sustentados pela ignorância, pelo moralismo, pelo conservadorismo e, atualmente, pelo poder político – os quais culminam em ações prejudiciais e até certo ponto criminosas contra um grupo de pessoas com uma crença considerada não hegemônica.”
Ainda, frisa-se que merece repúdio toda e qualquer forma, meramente depreciativa e racista, de associação de religiões de matriz africana à prática de crimes e atos antijurídicos.
Por fim, a meta não é a tolerância religiosa, mas sim a equidade de direitos e respeito religioso, respeito aos sagrados africanos e à todas as manifestações que tenham em África a sua origem. O direito deve parar de ser relativizado sob a perspectiva de argumentos eurocêntricos com o fim exclusivo de associar a população afrodescendente à criminalidade, à baixeza e ao questionamento e exposição de seus valores éticos e morais. É inadmissível que tenhamos que nos deparar, dioturnamente, com uso do Estado para a prática do epistemicídio.
Nenhuma violação de direitos será admitida, nem o tombamento de físico dos corpos negros, nem a relativização e aviltamento das epistemes negras.
Beatriz de Almeida: Advogada, professora e pesquisadora de relações étnico raciais afro-brasileiras. Especialista em Direito Tributário, Cível e Antidiscriminatório. Membro da Diretoria Executiva da Comissão da Mulher Advogada e Coordenadora na área de direito civil na Comissão de Graduação Pós Graduação e Pesquisa, ambas da OAB SP.
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