“O desenho está feio como você”- disse a “tia” da creche para menina negra, de 4 anos.

Quando me solicitaram que escrevesse sobre as ocasiões em que tive contato com situações de racismo, quando ocorreram e de que modo, várias lembranças se passaram em minha mente. Memórias vívidas desses meus trinta e dois anos de vida.

no Elas Existem

O primeiro contato ocorreu ainda na tenra infância. Para uma criança negra, afrodescendente, o racismo causa um impacto de tal magnitude que pode deixar sequelas pro resto da vida.

Certa vez, quando tinha por volta de quatro anos, após mudar de creche, estava na sala junto com coleguinhas e duas professoras. Ambas conversavam, enquanto nós, crianças, fazíamos vários desenhos. Sempre senti um olhar diferente da professora para mim, mas, como era criança, não tinha condições de decifrar aquele olhar. Foi então que uma coleguinha branca mostrou seu desenho para a professora em questão, que a elogiou. Eu, então, na minha ingenuidade de criança, também quis receber um elogio, e fiz o mesmo que a criança de cor branca, citada acima. Também queria ver o sorriso da professora e fui até ela cheia de alegria. Mostrei meu desenho, perguntei se estava bonito e ela, no alto de sua empáfia racista, me respondeu secamente que o desenho estava “feio” como eu, virando-se em seguida.

Mostrei meu desenho, perguntei se estava bonito e ela, no alto de sua empáfia racista, me respondeu secamente que o desenho estava “feio” como eu, virando-se em seguida.

Diante daquela manifestação racista, injusta, violenta, eu, criança, senti algo muito ruim, muita vontade de chorar. Me isolei, olhando para o desenho, me perguntando o que ele tinha de feio e porque ela havia dito que eu também era. No fim do dia, ao chegar em casa, relatei o ocorrido à minha mãe, que prontamente foi à creche para perguntar o que houvera. A professora em questão, negou com veemência, e disse que “jamais falaria algo assim para uma criança”. Em seguida, a Diretora conversou com minha mãe, assegurou que ficaria atenta à situação e suplicou para que o caso não fosse levado à Secretaria de Educação. Lembro-me bem que, ferida, que pedi para trocar de sala e não fiquei muito tempo nessa creche, pois chorava todos os dias ao chegar na porta da sala.

Esse foi o primeiro de muitos outros contatos com o racismo. E é notório que crianças negras são as maiores vítimas de maus tratos e violência. Não são poucos os casos relatados pela mídia, de crianças e adolescentes negras, fora das escolas, expostas a vulnerabilidades.

Sabe-se que há dispositivos legais, em especial no Estatuto da Criança e do Adolescente, e órgãos voltados para a prevenção de maus-tratos na infância, fase de vulnerabilidade e formação do ser humano. Mas poucos levam em conta que a infância de uma criança negra sempre será marcada por episódios que jamais ocorrerão com uma criança branca.

A título de exemplo, eu, hoje, adulta, não tenho habilidade alguma com desenhos, pinturas. Nunca tive. Desenvolvi, em virtude do fato que relatei acima, um bloqueio que ainda não consegui superar após sucessivas sessões de terapia.

Então, sendo inquestionável que a criança negra está exposta a uma vulnerabilidade e a uma violência, ainda que velada, muito maior que as demais crianças, cabe a todos nós persistir no que pode ser feito para melhorar esse quadro? Como evitar que sejam desrespeitados, sofram traumas em virtude de atitudes racistas e que adquiram bloqueios, para o resto de suas vidas? Finalmente, que tipo de sociedade estamos formando, que futuro queremos para nossos filhos?

Por essas outras, penso constantemente em abrir mão da maternidade, pois não sei se saberei lidar com tais questões novamente. E, ainda, se meu filho for um menino, além do medo de que possa sofrer com falas e atitudes racistas, há, também, o medo de perde-lo pela mão de chumbo do Estado Genocida, que claramente se posiciona contra nós.

O futuro de nossas crianças negras, vindas ou não de nosso ventre, depende de nós. Algo deve ser feito para evitar que nossos pequenos sofram com o racismo e que tenham o direito a uma infância e um desenvolvimento saudáveis que, até o momento, só uma criança branca, em regra, consegue alcançar.

Enf° Mariana da Conceição de Andrade. Graduada em Enfermagem, pela Faculdade UNIFESO/RJ. Experiência em Clínicas de Imunização e atualmente trabalha em uma empresa de Home- Care, Íntegra. Estuda e pesquisa fundamentações na área de Saúde Pública, Saúde Coletiva com viés em questões raciais, Saúde da População Negra, e as influências de raça/cor nos serviços de saúde.

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