O emblemático caso do jovem Robson, morto pela ditadura, está aberto ao público. O que isso significa em tempos de genocídio da população negra?  

FONTE Por Kátia Mello
Lucas Scaravelli da Silva e a viúva de Robson, Sueli da Luz, seguram a primeira página do processo judicial /Fotos: Natália Carneiro

O desarquivamento do emblemático processo judicial de Robson Silveira da Luz no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, neste dia 31 de março, data em que se completaram 58 anos do golpe militar no Brasil, é repleto de significâncias, inclusive, ao acontecer em momento em que se acirram a violência policial contra a população negra e os ataques às instituições democráticas deste País. O assassinato de Robson, jovem negro, aos 21 anos, torturado e morto por policiais no dia 4 de maio de 1978, nos porões de uma delegacia, é historicamente atrelado ao surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU) em 18 de junho daquele mesmo ano. Agora, com a abertura pública do caso, será possível reconstruir parte importante da história do povo preto desta nação.     

Só foi possível abrir os arquivos do caso Robson graças ao um empenho coletivo dos advogados de acusação, Carlos Cardoso e Celso Fontana, ambos até hoje militantes (brancos) e antirracistas no jurídico, da pesquisadora Renata Eleutério do coletivo CPDOC Guaianás, e do estudante Lucas Scaravelli da Silva, que resolveu contar essa história em sua tese de doutorado na USP, Robson de tal: memória das sujeitas e sujeitos pretos e pretos fraturados.   

Lucas da Silva meticulosamente se mobilizou para trazer à tona toda essa documentação com o intuito de buscar a realidade mais próxima dos fatos de um marco relevante da luta antirracista. Ao Geledés, ele revela que seu interesse pelo caso Robson remota de quando era ainda criança. Seu pai, o ativista Paulo Rafael da Silva, sempre mencionou as lutas de seu povo e o levava ainda pequeno nas manifestações antirracistas. Cantava para ele, inclusive, a canção Cerimônias do assassinato de um jovem negro, composta com o músico de Guaianases Tita Reis e que falava sobre a morte do jovem Robson.  

“Fui descobrir que na oratória das lideranças negras, essa história nunca tinha sido contada direito e até o local da morte estava errado. A própria delegacia que está nos autos não existia. A dificuldade em se estabelecer os fatos é a dificuldade da memória preta em se estabelecer”, diz Lucas. E continua: “estamos como sujeitos fraturados pela memória colonial, pela memória dominante. Não conseguimos acessar essa memória, tanto pela burocracia quanto pelos fatos que não conseguimos contar. Então essa é uma busca de organizar essa memória coletivamente”.   

Com a documentação em mãos, será possível, por exemplo, contar o crime de forma mais precisa. Apesar de o caso ter sido amplamente repercutido na imprensa à época, pouco se sabe sobre o que ocorreu exatamente. Robson voltava para casa numa madrugada em Guaianases, distrito na zona leste de São Paulo, após uma festa de noivado com alguns amigos quando encontraram o caminhão de frutas do Seu Joaquim. O grupo resolveu pegar algumas frutas e comê-las no caminho de casa. Sem se preocupar, Robson disse que pagaria ao feirante depois. Uma vizinha viu e contou ao dono do caminhão, que os denunciou à polícia. Robson, então casado com Sueli da Luz, conhecida como Vivi, com quem teve dois filhos, foi o único do grupo a ser preso e torturado na 44ª. Delegacia.  

Vivi conta à reportagem do Geledés como recebeu a notícia: “Seu marido foi preso e está sendo torturado, ele vomitou sangue”, disseram a ela, que resolveu saber onde Robson se encontrava. Quando o achou disse a ele: “vou em casa buscar uma roupa”. Mas ao voltar, a polícia já o havia mudado de lugar, segundo Vivi. De acordo com os laudos, após a tortura, Robson passou por uma cirurgia de retirada de um rim, perdeu um testículo e seu crânio e caixa torácica haviam sido deteriorados devido ao brutal espancamento. O jovem não resistiu e morreu cinco dias após ser preso, no dia 4 de maio de 1978. Vivi ficou viúva com um filho de 3 anos e outro de três meses. Na época, ela afirma que não trabalhava até ser admitida em uma fábrica de metalurgia em Guaianases.  

Uma revelação triste e emblemática feita agora pela própria Vivi é que exatamente 21 anos após perder o marido, um dos filhos, aos 21 anos, morreu no mesmo local, em Guaianases, nas mesmas condições que o pai, ou seja, pela repressão policial. Em um país em que a cada 23 minutos, a violência policial mata um jovem negro, esta não é uma escabrosa coincidência. O coletivo Objetos Pichadores Não Identificados (OPNI) em São Mateus fez um memorial em homenagem a Robson. Mas quantos memoriais serão necessários para homenagear os jovens mortos nesse País? Se aqui há o intuito de se entender o que se passou com os negros e negras torturados e executados durante os anos de chumbo no País, hoje se tornou fácil fazer um paralelo com a engenharia do Estado de repressão policial que tem a população preta como seu alvo contínuo, em um processo violento que chegou ao atual genocídio dos jovens negros.    

Também não foi coincidência que o assassinato do jovem Robson, ao lado do caso de discriminação dos atletas juvenis negros no Clube de Regatas Tietê, ter sido transformado em uma bandeira antirracista no histórico protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, no dia 7 de julho de 1978, que culminou com o surgimento do MNU. Naquela tarde de julho, mais de duas mil pessoas se uniram no centro de São Paulo para exigir o fim da violência contra a população negra e uma série de reivindicações para esta população. Entre os manifestantes, estava na escadaria a filósofa, antropóloga, política e escritora Lélia Gonzalez, que fez um discurso memorável, e ativistas políticos presentes no fórum da Barra Funda neste dia de reabertura do caso Robson.   

 Para o ativista Rafael Pinto, as reivindicações de hoje são as mesmas dos tempos da ditadura: parem a matança dos negros. 

“O Robson foi preso dia 28 de abril e faleceu no Hospital das Clínicas em consequência de torturas. Neste momento, estávamos bastante organizados para fazer essa denúncia. A revista Versus deu visibilidade para essa questão. Foi também um período em que já falávamos sobre a abertura democrática. Escolhemos as escadarias do Teatro Municipal (para o protesto), porque era um lugar de concentração de negros às sextas-feiras e ali já trabalhávamos com panfletos e jornais em atividades desenvolvidas pela comunidade negra”, lembra Rafael Pinto, um dos ativistas do MNU.   

De lá para cá, o MNU ­­­- o mais longevo grupo político antirracista do país, com quase 44 anos e presença em 12 estados brasileiros-, pautou, através de suas lutas, as grandes mudanças no País, a começar por desmantelar a tão ac­lamada democracia racial. Ainda dessas pautas do MNU vieram a consagração do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra, a implementação das cotas raciais nas universidades públicas, a instituição do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, a tipificação do racismo como crime. E tudo começou naquela escadaria do Teatro Municipal em que os ativistas pediam Justiça para Robson.   

Com os 11 tomos disponibilizados será possível agora contar a verdadeira história do processo judicial que levou à formação do Movimento Negro Unificado

Outra questão que ajudou o caso de Robson tornar-se emblemático foi o fato de sua família de classe operária, de funcionários públicos, sindicalizados, ser formada por militantes antirracistas. “Na mesma data, morreram outros pretos e pretas que não entraram para o discurso fundacional do Movimento Negro Unificado. Hoje para se lembrar de memória preta, a gente se lembra de quem?” indaga o pesquisador Lucas ao mencionar que os historiadores brasileiros comumente citam os casos de Vladimir Herzog e do filho de Zuzu Angel, Stuart Angel Jones, também mortos pela ditadura, mas sem nunca mencionar ou contabilizar os negros assassinados nos mesmos porões. Neste sentido, é mais um capítulo de como o racismo institucional modela a história desse País, retirando até o direito da população negra em reverenciar seus mortos.   

Ativistas da fundação do Movimento Negro Unificado, gerado em protesto do caso Robson, estiveram presentes no desarquivamento   

Em termos de Justiça, não há dúvida de que o caso Robson foi uma vitória nos tribunais ao atingir a exoneração e a punição do delegado Luiz Alberto Abdalla e dos policiais torturadores, que deixaram de realizar a função policial. O processo foi encerrado virtualmente em 1988 e, na década de 1990, a família foi indenizada e, mesmo sendo uma quantia indenizatória simbólica, ela foi considerada uma vitória na questão racial. “Do ponto de vista de uma vitória política, foi um enfretamento da violência policial. Desarquivar esse processo é importante porque o judiciário não permitiu que tivéssemos acesso ao processo. Na conjuntura que vivemos, mais fortalecidos no enfrentamento do racismo, com vitórias do STF e ocupação no legislativo e Executivo, com a luta mais fortalecida, lembro aqui que o caso Robson foi o George Floyd dos dias atuais”, afirma Rafael Pinto.   

Sob a perspectiva do atravessamento das violências no cotidiano das mulheres negras, Vivi, a viúva de Robson, teve que dar conta dos filhos pequenos, além de sofrer perseguição política. “Tenho as piores lembranças daqueles dias. Fui perseguida, mandavam bilhetes por debaixo da porta dizendo que iam me matar. Minha mãe não me queria, minha família não me queria também com medo de morrer”, lembra ela. “Eu só queria Justiça, o que fizeram com ele foi muito injusto”, completa.   

Maria Sylvia de Oliveira, membra do Conselho executivo de Geledés, afirma que as histórias das mulheres negras seguem invisibilizadas.

Hoje, a busca de Justiça faz parte da vida de milhares de mulheres negras que perderam seus jovens maridos, filhos, sobrinhos e netos neste genocídio sem fim da população preta. “De lá pra cá, muito pouca coisa mudou. Essa mulher perdeu o marido em 1978 e 21 anos depois seu filho foi assassinado. Para nós mulheres negras as nossas histórias seguem invisibilizadas e os acontecimentos se repetem. Saímos de um processo de ditadura, 21 anos depois tínhamos um cenário de abertura, mas a situação da população negra não muda em praticamente nada. Estamos em 2022, e a cada 23 minutos um jovem negro é morto. Para nós, a violação de direitos humanos e o extermínio de jovens negros é sistemático”, diz Maria Sylvia de Oliveira, advogada, integrante da OAB-SP e membra do Conselho diretor executivo do Geledés.  

“As reivindicações continuam as mesmas, queremos viver. Precisamos cessar o extermínio da juventude negra. Hoje nós temos a identificação de quem está sendo eliminado pela violência policial: são os jovens negros”, afirma Rafael Pinto.   

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