O engodo da democracia no Brasil contemporâneo, por Adriano Senkevics

 

Adriano Senkevics

Entre todos os binarismos comumente utilizados para se pensar política, um dos mais perigosos é a oposição entre “ditadura” e “democracia”. Ele ofusca, entre outras, a percepção de resquícios de autoritarismo dentro de um regime democrático, como se a “democracia”, livremente anunciada e louvada, carregasse em si todas as benesses do mundo. Na realidade, não precisamos exatamente de uma ditadura para ter um governo marcadamente autoritário.

E talvez essa discussão não tenha estado tanto em voga nos últimos anos desde as manifestações de junho, quando uma série de pautas que dizem respeito à construção de uma sociedade democrática entrou em cena e teve, como antagonista, a instituição que melhor simboliza o autoritarismo latente do Estado brasileiro: a polícia militar. Falou-se até da possibilidade de um golpe empreendido pela direita.

Concordo com a tese da colega Marília Moschkovich, para quem um “golpe” em reação às manifestações de junho dificilmente seria um golpe de Estado (como a volta dos militares, anseio que uma parcela da sociedade estava retomando), pois as condições hoje são outras. Além disso, os interesses dos grupos dominantes estão sendo bem atendidos no país e não tivemos ainda um/a presidente que de fato tenha dado passos substanciais no enfrentamento desses. Porém, um golpe contra os direitos políticos e civis, que atentasse contra a liberdade de expressão e de mobilização é bem possível. E é o que, em alguma medida, tem acontecido.

 

O engodo da democracia no Brasil contemporâneo

 

Vale lembrar que concomitantemente aos protestos, veio à tona a tal da “lei antiterrorismo”, a qual facilmente se desdobrava para a criminalização de movimentos sociais e, como um efeito direto das mobilizações de rua, a medida aprovada pela assembleia legislativa do Rio de Janeiro de proibir o uso de máscaras em manifestações. Além disso, um discurso de rejeição (por vezes violenta) a partidos políticos misturou-se a um nacionalismo exacerbado, típico de regimes fascistas, para os quais a representação de minorias étnicas e políticas é sempre um problema.

Criou-se, assim, um contexto para que a nossa fragilizada democracia fosse novamente atacada. Um item a mais para aumentar a lista. Apesar de já se fazer praticamente três décadas desde que o regime militar caiu por terra, estamos ainda muito longe de construirmos uma democracia e, o pior, não temos tido perspectivas positivas em variados aspectos.

Exemplos?

A prática da tortura é bastante emblemática do nível a que um governo ditatorial pode chegar para extrair informações nos seus cruéis interrogatórios. Adiciono que, infelizmente, a prática da tortura segue a todo vapor na atualidade e, segundo obra organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle (2010), o Brasil é o único país da América Latina onde a ocorrência de tortura aumentou com o término do regime militar. Isso está diretamente relacionado ao fato do nosso país manter uma polícia altamente militarizada, um desprezo aos direitos humanos (como discutimos em outro texto) e a ausência de iniciativas instituicionais para se limpar o nosso passado. Ex-torturadores seguem inocentes, a verdade continua escondida e, assim, a tortura é autorizada como uma rotina.

 

 

Nesse sentido, vale citar também o estudo, já discutido em outro textoneste blog, de que a polícia militar do Estado de São Paulo, além de ser uma ferramenta para reprimir mobilizações sociais seja lá em qual estado da federação, matou mais pessoas em cinco anos do que toda a polícia dos Estados Unidos. Entre 2005 e 2009, foram mortas 2.045 pessoas, uma média superior a um por um. Chocante, não? Inclui-se nesse intervalo uma das ações mais desastrosas da PM, a saber, a reação contra os ataques do PCC, no qual centenas de inocentes foram brutalmente assassinados em poucos dias.

E como muitos outros aspectos deste país, a morte desses inocentes tem raça e cor. Aqui entra o meu terceiro exemplo: o Mapa da Violência de 2012 apontou que está ocorrendo em todo país uma “pandemia” de morte de jovens negros e pobres da periferia. Se em 2002 a vitimização de jovens negros estava na casa dos 71%, em 2010 esse índice saltou para 153,9%, significando que morrem duas vezes e meia mais jovens negros que brancos, em uma tendência crescente altamente conectada à truculência policial, racismo e criminalização da pobreza.

Vejam, então, que os simpatizantes da ditadura militar não devem encontrar muitos motivos para ficarem preocupados. É fato que esse tabuleiro social está jogando a favor deles e de todos os setores da sociedade que, a cada apologia ao racismo e à violência, a cada desprezo aos direitos humanos (que nos deveriam ser tão caros e importantes!), a cada incentivo à militarização e truculência policial, puxa, às vezes sem saber, o gatilho que dispara contra tais inocentes e que leva à manutenção dessa ordem desigual, injusta e opressora. Sem rever o seu passado, e discutir o seu presente, o Brasil não avança em termos de direitos, liberdades e cidadania.

 

 

Quando falo “rever o passado”, todavia, não me refiro a simplesmente se desculpar pelos erros cometidos. O editorial que o jornal O Globo lançou, com o intuito de pedir desculpas por ter apoiado o golpe militar, muito me preocupa. Não que eu não acredite na justificativa deles – até porque um governo ditatorial pode ser uma imensa pedra no sapato da imprensa – mas exatamente porque a argumentação do editorial demonstra claramente a visão parca que se tem ao discutir democracia no Brasil, como se a corporação Globo estivesse sintonizada com os anseios democráticos que vem da base de movimentos sociais. E sabemos que não está!

O discurso midiático – e a própria estrutura oligárquica dos meios de comunicação – tem sido um dos maiores entraves aos progressos sociais, pouco importando a postura X ou Y que eles adotaram há trinta anos quando houve o golpe. De lá para cá, a Globo continua a mesma: comercial, oligárquica, politicamente conservadora, perigosamente detentora de muito poder, e tudo aquilo que estamos cansados de denunciar e criticar. Preferiria, na real, que a Globo continuasse calada diante da ditadura. Iria me parecer mais coerente com o papel que eles ainda têm no tocante à democratização.

É essa democracia tradicional, formal, à moda dos Republicanos, que é o nosso maior engodo. A democracia dos direitos no papel, das formas tradicionais de exercício de poder, do aparato militar e policial repressivo, da referência ao “cidadão de bem”, da defesa de valores e moral da “família”. É um engodo porque ela nos desmobiliza, reduzindo a profunda discussão política que deve vir à tona – que vai da distribuição de renda à democratização dos meios de comunicação, passando pela garantia de direitos sociais e o fortalecimento dos serviços públicos – a uma questão basicamente moralista, panfletária e até mesmo perigosa, fazendo dualismo com o termo “ditadura” para esconder nossos ranços autoritários; a democracia tomada como certa, como referência, não discutida, não destrinchada, não modificada.

É contra a democracia posta como uma “virgem no altar”, nas palavras de José Saramago, que devemos nos opor.

 

Fonte: Ensaios de Gênero

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