O estupro é um ato de demarcação nas entranhas femininas, escreve antropóloga Debora Diniz

O estupro é um ato de demarcação nas entranhas femininas feito patriarcado para assinalar o território do corpo submetido à sua disciplina

A nova campanha da Organização das Nações Unidas de combate à discriminação contra as mulheres esconde nossas bocas e faz do Google o texto de nossas vidas (http://www.unwomen.org/en/news/stories/2013/10/women-should-ads). Os olhos das mulheres da campanha são variados, mas todos miram os autores das buscas eletrônicas infames. Eles são sujeitos anônimos sem geografia definida. As bocas congelam as expressões mais comuns lançadas no buscador que tudo sabe: “mulheres na cozinha”, “mulheres como escravas”, “mulheres em casa”, “mulheres disciplinadas”. Uma pesquisa global, que recuperou o mais secreto sobre a discriminação de gênero. O escândalo não foi só saber que há multidões em busca de informações sobre como ter uma escrava sexual ou como proibir as mulheres de votar. O inquietante foi retirar o véu e conhecer os segredos do oráculo sobre a desigualdade de gênero. Ela é íntima, cotidiana e persistente. E o pior: global.

 

A violência doméstica é uma das maneiras de governar os corpos da casa pelo regime do medo. Ela pode se expressar pela disciplina do castigo físico, pela humilhação ou pelo confinamento. Ou ainda por uma das formas mais perversas de expressão do patriarcado – o estupro. O estupro ofende as mulheres, não só no corpo possuído pelo prazer e ímpeto de tortura do agressor, mas principalmente porque nos aliena da única existência possível: a do próprio corpo. Uma mulher vitimada pelo estupro não é só alguém manchada na honra, como pensavam os legisladores do início do século 20 ao despenalizar o aborto por estupro, mas alguém temporariamente alienada da existência. Honra, dignidade, autonomia são ignoradas pelo estuprador, é verdade. Mas o estupro vai além: é um ato violento de demarcação do patriarcado nas entranhas das mulheres. É real e simbólico. Age em cada mulher vitimada, mas em todas as mulheres submetidas ao regime de dominação.

A moral patriarcal que oprime não se contenta em demarcar espaços ou vozes. Ela necessita das entranhas, ou melhor, das vaginas, para demarcar o território do corpo feminino sob sua disciplina. A magnitude do estupro no Brasil é um dos territórios da dominação patriarcal e da consequente desigualdade de gênero. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 50.617 estupros em 2012, um crescimento de 18,17% em relação a 2011. Sim, há vários problemas nesse dado – houve mudanças no sistema de classificação do estupro, alguns Estados são mais confiáveis que outros na alimentação de dados administrativos, e somente em 2011 o registro de estupro se tornou obrigatório pelos sistemas de saúde público e privado. Talvez não seja um crescimento na taxa, mas uma notificação mais rigorosa. Pouco importa: o escândalo não está no crescimento em milhares de vítimas, mas na persistência do abuso. As mulheres ainda são objeto de alienação pelo poder patriarcal, que tem no estupro um de seus indicadores mais perversos.

E aqui está nosso desafio. Não são mulheres abstratas que se verão traduzidas em números pela estatística do estupro. Há biografias; e nelas há cor, classe, geração e espaço predeterminado pela cartografia da opressão de gênero. Ela é jovem, filha, negra e pobre. A casa é o reduto da violência, mas também do segredo. Por isso, os novos registros dos sistemas de saúde podem ter alterado o cenário nacional da magnitude – talvez não seja a delegacia a porta de entrada do desamparo dessas mulheres, mas os hospitais. Essa menina, além de abusada, abandonou a escola, sofre de outras doenças, tem medo de morrer se voltar para perto do abusador. Por isso o oráculo Google é tão inquietante para entender os milhares de estupros da sociedade brasileira – as perguntas secretas são também práticas cotidianas e domésticas. O estupro é uma forma de violência doméstica. Se o estupro de rua foi já chamado de cruento, o abuso intrafamiliar é o estupro doméstico. É dele que falam as estatísticas.

As manchetes sobre a pesquisa brasileira compararam o número de estupros ao de homicídios dolosos, isto é, aqueles com intenção de matar. Se a comparação tinha por interesse analisar duas infrações penais em que o agressor tem intenção no ato violento, há algum sentido em dizer que o País tem uma taxa mais alta de estupros que homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Há um animus de gênero no estupro. Apesar de a legislação brasileira considerar que estupro é qualquer ato sexual não consentido, as mulheres são as principais vítimas. Mas essa não me parece ter sido a lógica argumentativa. O ímpeto é punitivo – comparar estupro e homicídio é escandalizar a opressão de gênero por um caminho enviesado e frágil para as vítimas. O estupro é um crime contra a integridade física e moral das mulheres. O homicídio é um crime contra a vida. Proteger as mulheres exige uma leitura cuidadosa das frases escondidas do Google, do desmembramento dos tentáculos do poder patriarcal que alimentam as religiões, as escolas e as famílias. A mudança não está no atalho da mão punitiva, mas na longa jornada de transformação dos padrões de sociabilidade de gênero. As mulheres não são escravas, devem ter o direito ao voto e são felizes fora da cozinha.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

Fonte: Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha

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