O exemplo de Roger Machado e o dedo na ferida do racismo à brasileira

Há tempos, o atual técnico gremista é uma das vozes mais lúcidas do futebol. Quando ele fala, devemos escutar.

FONTEPor Douglas Ceconello, do ge
Roger Machado (Foto: Lucas Uebel/Divulgação/Grêmio)

Em entrevista à agência AFP, Roger Machado voltou a abordar com contundência a questão do racismo no Brasil. Conforme revelou o técnico, na quarta-feira, na vitória do Grêmio contra o Operário, torcedores dirigiram-se a ele insultando sua mulher e suas filhas, usando adjetivos pejorativos. Há anos que o atual comandante gremista é uma das vozes mais relevantes do futebol brasileiro quando se manifesta sobre questões sociais e raciais, posição corajosa e necessária vinda de alguém que dirige um dos maiores clubes do país — portanto, comunica-se com milhões de pessoas.

Em uma das passagens mais incisivas, Roger Machado apontou que a escalada de casos de racismo não acontece por acaso, pois é um comportamento autorizado pelo próprio presidente do país. “Os indivíduos [racistas] que estavam escondidos [porque a sociedade os reprimia] se sentem autorizados a se manifestar segundo as posturas e pontos de vista do líder da nação, [porque estes] são convergentes.”

É uma postura destemida de Roger Machado, ao assumir que nessa questão apenas um lado precisa ser tomado — e esse lado é o que combate o racismo, não interessa em que essa postura vá respingar. Como repercussão, obviamente surge a ideia pueril (ou mal-intencionada) de que futebol e política não devem se misturar. Mas o racismo não deveria sequer fazer parte do espectro do debate político: é crime, e assim deve ser tratado. Apenas quem é racista (ou conivente com o racismo) se sente atingido com falas tão necessárias como as de Roger.

As manifestações do treinador são muito bem-vindas, especialmente nesta semana em que os próprios brasileiros foram vítimas em casos de racismo em vários jogos da Libertadores. Nos traz de volta ao nosso próprio quintal, para que não esqueçamos do racismo à brasileira, praticado diariamente há séculos, “que construiu o falso mito de uma ‘democracia racial'”, como disse o próprio técnico.

É uma tentativa diária de empurrar os preconceitos para baixo do tapete, enquanto se mantém uma estrutura perversa que continua beneficiando os que historicamente sempre se beneficiaram. “Quando negros e brancos decidem ascender na pirâmide social, os filtros começam a aparecer”, explicou com autoridade o técnico, que com frequência faz questão de mostrar como o racismo estrutural impede a ascensão dos negros — e o futebol, como parte da sociedade, está incluído nesse sistema de opressão. Roger Machado fala na condição de negro brasileiro nascido em Porto Alegre e bem-sucedido em sua profissão. Poderia optar pelo silêncio, mais confortável, mas preferiu tornar-se uma voz pela mudança. Quando ele fala, portanto, devemos escutar.

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