O legado intelectual de um autor e a sua obra: Uma análise sociológica sobre o “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” de Clóvis Moura

FONTEPor Christian Ribeiro*, enviado para o Portal Geledés
Foto: Acervo pessoal/Reprodução/Yahoo

Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003), foi um intelectual de batalhas, um pensador social inquieto, exemplo de um rebelde com causa que não aceitava o impossível como limite. Fez de sua intelectualidade uma verdadeira arma contra o racismo estruturante da sociedade brasileira. Era um intelectual negro – com todas as marcas e agruras que tal condição acarreta – por desafinar o coro dos contentes em defesa dos seus, das populações negras historicamente ignoradas em suas existências e direitos.

Intelectual marxista, navegou por estas duas esferas que acabariam por influenciar na constituição de sua obra, a da negritude e do comunismo/socialista, para a partir da interpretação destas desenvolver e inserir interpretação histórica-sociológica do negro enquanto sujeito coletivo responsável pela construção e modernização de nossa sociedade, como o elemento civilizatório revolucionário de sua civilização. Tendo nos quilombos e aos processos de revoltas, insurreições e rebeliões de escravizados a materialização política dessa originalidade negra para o desenvolvimento e radicalização de nossa organização social, dessa forma constituindo o caminho para o fim do sistema escravagista e monárquico no Brasil, dinamizando os processos políticos e relações sociais que resultaram para o advento da proclamação da República no Brasil.

“Rebeliões da Senzala” (1959), livro que demarca o início de sua bibliografia crítica é obra pioneira por inserir na nossa bibliografia essa perspectiva até então ausente ou ignorada, pela maior parte de nossa intelectualidade, tornando-se ao longo dos anos um referencial teórico e político para as novas gerações de militantes negros e intelectuais antirracistas. Obra que por décadas dialogou e confrontou as “certezas absolutas”, os estereótipos negativos balizadores de nosso racismo estrutural que se fazem reproduzir a partir de nossa intelectualidade.

Nesse sentido, um livro que ocupa uma representação duplamente simbólica na produção bibliográfica mouriana é o “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” (2004) enquanto conjunto textual que sintetiza o compromisso de usa práxis intelectual em valorizar e dar voz aos seus, as historicidades e saberes das populações afro-brasileiras, ao mesmo tempo em que se constituí enquanto o livro que representa o último lapidar da intelectualidade artesanal de Clóvis Moura, pensador social que exercia o seu ofício de maneira independente, fora das oportunidades e suportes que se fazem comuns aos que se encontram inseridos a formalidade institucional acadêmica.

Num primeiro momento, o título da obra gera impressão de que se trata sobre um compêndio que irá apresentar o tema da escravidão em si. Mas na verdade, como mestre das dialéticas que era, Moura nos apresenta uma problematização da escravidão enquanto fator histórico decisório para a nossa formação histórica e social, infligindo diretamente aos destinos não cidadãos das populações afrodescendentes ao mesmo tempo em que verbaliza e contextualiza pessoas, coletivos, processos políticos, históricos, religiosos e culturais que estas populações constituíram enquanto processos de resistências organizadas e sistêmicas contra um projeto de sociedade baseada na exploração e extinção de seus corpos, na negação e destruição de seus saberes e intelectualidades, na animalização ou coisificação de suas humanidades.

“Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, enquanto projeto de pesquisa, têm o seu início ao começo dos anos 1970, e que entre idas e vindas, quase foi publicado – como protesto intelectual – em meio aos projetos de comemoração ao centenário da promulgação da abolição da escravatura em 1988. E somente ao final dos anos 1990 e começo dos anos 2000 é que se deu o processo que efetivamente resultaria na sua publicação. Já em época que sua saúde encontrava-se debilitada, sendo os originais da obra terminados quando já se encontrava hospitalizado, as vésperas de seu falecimento.

Um esforço intelectual que acreditamos representar o quanto era sério e verdadeiro o seu compromisso em fazer por representar de maneira altiva e soberana as constituições das populações afro-brasileiras para a construção da sociedade brasileira, dessa maneira contribuindo para combater o nosso racismo e conservadorismo endêmicos, visando desse modo a construção de um conjunto social socialmente justo e igualitário em direitos e oportunidades por uma vertente marxista não ortodoxa e racialmente democrática. Ao mesmo tempo em que situa sua obra enquanto um dos elementos fundantes, referenciais da negritude brasileira a partir da segunda metade do século XX. Obra que exemplifica a originalidade e singularidade de um dos maiores intérpretes do Brasil, das nossas complexidades, particularidades e conflitações de nosso arcaísmo social, de nossa incompletude cidadã.

Quantos autores, além de desenvolver uma carreira tão longa e prolífica, conseguiram constituir de maneira consciente e planejada o início e término de sua própria produção intelectual? Clóvis Moura foi um dos poucos e assim o fez, com a imprescindível assessoria e organização de sua filha a historiadora Soraya Moura – que já atuara como pesquisadora do projeto nos anos 1980 – para a sistematização final do dicionário, deixando-o praticamente pronto, exceto por revisões pontuais, para a sua publicação, já como obra póstuma (tendo em vista o seu falecimento na data de 23 de Dezembro de 2003) em 2004 pela Editora EDUSP. O que nos permite interpretar “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil” não como um epitáfio, em vista que interpretamos a sua obra estando mais viva e influente do que nunca, mas sim tal qual um testemunho, um legado de uma obra e seu autor, que de tão imbricados se tornaram indissociáveis um do outro.

Testamento da trajetória intelectual rebelde e insurgente mouriana em não aceitar as ilusões e mentiras, referentes a não existência de racismo em nosso país, que se multiplicam como loas infinitas em míticas terras de democracia racial. Para dessa maneira reafirmar, através de seu ofício de pensador social, a sua própria humanidade, enquanto homem negro cioso e orgulhoso de sua ancestralidade africana. Intelectual que nunca se coadunou por limites ou regras, tal qual um Exu sociológico circulando para além de fronteiras, transpassando referenciais estabelecidos, criando desordens pensantes e comportamentais, constituindo referenciais de liberdades criativas e interpretativas aonde queriam normatividade e obediência, descobrindo “novos mundos” e possibilidades de existências, para assim contribuir na construção de novas e libertárias perspectivas sociais e históricas para as populações afro-brasileiras, para além do que era previsto e comumente esperado.

Uma opção de vida consciente e planejada aos quais escolheu trilhar os seus rumos intelectuais, em que a publicação do dicionário representou o digno fechamento dessa gênesis, referente a essa etapa bibliográfica da obra mouriana. O que para nós acaba por justificar o apêndice do dicionário, referente ao roteiro bibliográfico – enquanto orientação teórica a futuras construções de estudos e reflexões – acerca do “Quilombo dos Palmares”, assunto que sempre lhe foi tão caro e urgente. Dessa maneira como que representando uma interação direta entre o dicionário com a sua primeira obra de cânone histórico-sociológico, que é “Rebeliões da Senzala”, reafirmando assim o seu compromisso intelectual, e a constância desta, em quase meio século de valorização e destaque aos saberes e potências das populações afro-brasileiras no cerne de nossa historiografia . Ao mesmo tempo em que inaugura a atemporalidade de sua obra, da sua transformação enquanto herança intelectual e política em constante diálogo com as gerações vindouras.

Ante a nossa barbárie contemporânea, as sofisticadas e revolucionárias traquinagens intelectuais do Exu sociológico mouriano em abrir os caminhos para a construção de uma sociedade verdadeiramente antirracista – socialmente justa, participativa, radicalmente democrática e igualitária – permanecem mais atuais e vivas do que nunca. Nas esperanças e nas mais variadas e díspares resistências oriundas das quilombagens intelectuais e políticas que se multiplicam e fortalecem cotidianamente, ante a este ideário de Casa-grande, que persiste em não transformar-se em cinzas.

Em tempos de conservadorismo sem limites e pudores, ao qual explicitações públicas de racismo, preconceitos e elitismos são interpretadas e legitimadas enquanto padrões positivos de sociabilidade e respeitabilidade, interpretamos como mais que bem-vindas as ações de (re)descoberta e aprofundamento sobre a importância crítica e contestatória que o “Dicionário da Escravidão Negra no Brasil”, assim como da própria obra em geral de Clóvis Moura, acerca da sua percepção atemporal e compromisso histórico de que não devemos nos curvar ou omitir ante a sanha intolerante e destrutiva daqueles que sem pudores, parecem viver única e exclusivamente para matar, exterminar à aqueles que não consideram enquanto os seus iguais, que não consideram enquanto os seus semelhantes.

O que nos leva a encerrar essa análise sociológica nos indagando se existe melhor legado para um autor e sua obra, do que manter-se vivo e contemporâneo, enquanto referência intelectual e política, na construção de saberes autônomos dos historicamente marginalizados? Dos tradicionalmente ignorados, renegados em suas existências? Aos quais sempre dedicou representar através de seu pensamento social?

Sinceramente… Acredito que não!

Clóvis Moura vive! Viva Clóvis Moura!

Referência Bibliográfica:

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

 

Christian Ribeiro (Arquivo Pessoal)

*Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento social negro no Brasil.


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