O livro “Quarto de Despejo” e suas questões jurídicas

Em uma conjuntura tão conturbada em nosso país, em que as instituições e seus representantes protagonizam os noticiários e dominam os debates na esfera pública, é necessário que voltemos à realidade, que voltemos a nos chocar com a vida que está nas ruas dos bairros de nossas cidades, que observemos os problemas e injustiças sociais em seu caráter humano.

Por Ricardo Juozepavicius Do Justificando

Foto: Audálio Dantas

É sempre valioso ouvir e amplificar a voz de quem nos oferece a lucidez de que há seres e problemas humanos demais, concretos demais, apesar das instituições.

O livro Quarto de Despejo (1960), escrito por Carolina Maria de Jesus (1914 –1977) entre 1955 e 1960, é um retrato literário que cumpre perfeitamente essa função. Trata-se de uma escrita testemunhal sobre o cotidiano da autora e dos moradores da Favela do Canindé, em meio a explosão urbana que São Paulo passava na época, com os consequentes sofrimentos, indignações, revoltas e angústias que a população marginalizada era obrigada a superar diante de sua situação de miséria e desamparo.

A escritora Carolina Maria de Jesus, por Audálio Dantas.

A autora, Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe de João, José Carlos e Vera Eunice, favelada, catadora de lixo e escritora, escreveu seu diário em cadernos que encontrava nos lixos de São Paulo. A autora escreve em forma de diário as tarefas e os acontecimentos de seus dias, não poupando expressões para detalhar suas dores e os absurdos da vida que levava em condições de extrema marginalização.

Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato felicidade (p. 72).

O livro veio a público quando o jornalista Audálio Dantas, visitando a Favela do Canindé, conhece Carolina por acaso e se encanta com seu diário, promovendo e auxiliando na publicação da obra. Quarto de Despejo foi um sucesso de vendas no Brasil e no exterior[3] e, na época, levantou uma curiosa polêmica acerca da veracidade de sua composição, suspeitava-se que o jornalista teria forjado a obra para alcançar o sucesso comercial, diante de relatos tão caprichosos e intensos houve a desconfiança infundada e preconceituosa de que não poderia realmente ser uma mulher negra, pobre e pouco letrada a real autora da obra.

Os relatos são tristes e cruelmente reais. As frases curtas, impactantes, e a linguagem real e cheia de vida, transformam a leitura de suas memórias em algo vívido e perturbador. É inevitável que o leitor – contando com um mínimo de empatia – sentirá o peso da vida naquele lugar, as angústias da fome e a esperança – e falta dela – de Carolina levar uma vida mais digna junto aos seus filhos.

O título Quarto de Despejo é uma alusão à metáfora que a autora utiliza em algumas oportunidades para expressar a posição da favela e de seus moradores em relação à cidade:

“As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo (p. 33).”[4]

“Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras.  As favelas(p. 76).”

O motor do livro é a indignação. A situação de pobreza e marginalização não é nunca naturalizada, a autora manifesta seus desgostos, sua indignação, reclama de seu sofrimento e sonha com mudanças pessoais e também com mudanças na esfera política que façam a situação coletiva prosperar.

Em conversas com outros moradores frequentemente é esse o assunto junto a política, políticos, eleições, governo, economia, e também os acontecimentos cotidianos da própria comunidade, pessoas que chegam e que vão, brigas entre moradores, problemas conjugais, entre outros.

Um dos aspectos que mais marcam a dor vida da autora e o incômodo que a leitura causa é a fome que, além de Carolina, também é personagem principal do livro. As palavras pão, água, café, ao lado da própria fome, repetem-se em quase todos os dias do diário. Aluta contra a fome – sua e de seus filhos – é constante e conduz toda a vida de Carolina no período do diário.

“Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou aos meus olhos.

A comida no estômago é como combustível nas máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. Meu corpo deixou de pesar. […] Eu tinha a impressão que eu deslizava no espaço. Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida (p. 36).”

“É quatro horas. Eu já fiz almoço- hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e reponho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está no alcance do favelado, fico sorrindo atôa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante (p.44).”

“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (p. 27).”

Além da condição de pobreza e fome, outros temas que incomodam Carolina são abordados diversas vezes e chamam a atenção pela atualidade e pelo seu conteúdo jurídico, sendo que o modo que a autora descreve e encara as situações permite notar uma visão do direito e de sua relação com a população de um ponto de vista mais humano e concreto, da forma como as questões aparecem em seu cotidiano, e como continuam a aparecer no cotidiano de milhões de brasileiros e brasileiras, ou seja, distante das instituições jurídicas, que nem mesmo alcançam aquelas pessoas em situação de vulnerabilidade social e distanciamento das agências de poder e centros decisórios.

É o caso, por exemplo, das inúmeras descrições de violência doméstica entre moradores da favela, que é colocada como uma questão complexa e ligada a muitos outros fatores que condicionam a vida daquelas pessoas, além de assédios, abusos, estupros e do evidente caráter misógino de nossa sociedade, em que Carolina demonstra que o gênero as deixavam em posição extremamente mais vulneráveis do que os homens em todas as esferas sociais:

“Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil, porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra, só lia os nomes masculinos como defensores da pátria então eu dizia para minha mãe:

– Porque a senhora não faz eu virar homem?

Ela dizia:

– Se você passar por debaixo do arco íris você vira homem.

Quando o arco íris surgia eu ia correndo na sua direção mas o arco íris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante de povo. Eu cançava e sentava, depois começa a chorar. Mas o povo não deve cançar, não deve chorar, deve lutar para melhorar o Brasil para nosso filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para minha mãe:

– O arco íris foge de mim (Jesus, 1963, p. 48).”

Carolina também descreve comparecimentos ao Juizado de Menores para buscar seus filhos que estavam nas ruas enquanto ela trabalhava, ou esclarecer problemas de condutas consideradas como crimes. Também relata suas idas ao Juízo para retirar o dinheiro da pensão paga pelo pai de seus filhos, enfrentando filas, atrasos de pagamento, e burocracias que complicavam ainda mais a sua situação econômica, tendo que sustentar três filhos sozinha.

O problema do alcoolismo na comunidade também tem importante espaço no relato de Carolina. O álcool ligado muitas vezes às brigas conjugais, familiares e entre moradores, é normalmente combustível para violência física ou verbal na comunidade, ensejando em contextos de crimes e problemas graves de saúde.

As ocorrências de delitos, dentro e fora da favela, também chamam a atenção no relato da autora. Sobre isso, ela menciona à criminalização seletiva da população da favela por parte da polícia, em que pessoas com o estereótipo de “negro, pobre e favelado” normalmente são as selecionadas pela polícia:

“Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (p. 96).”

A autora descreve situações em que o aparato repressor do Estado, através da rádio patrulha, intervém nos conflitos de maneira quase sempre neutralizadora; ou seja, encaminhando pessoas para a prisão ou detenção nas delegacias. Carolina relata também alguns furtos e roubos dentro da favela, acerto de contas de dívidas, e também o problema da vingança privada, através dos linchamentos, que reflete o total desamparo daquela população no tocante aos serviços governamentais.

O Estado está presente ali apenas para reprimir.

Carolina também escreve sobre as questões raciais dentro e fora da favela, relata sobre episódios de racismo, e deixa transparecer um pouco da estrutura racializada da cidade de São Paulo na época e da posição marginalizada que os negros e negras ocupavam, mas também exalta a sua cor e o desejo de igualdade:

“Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta […] O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém (p. 58).”

Cada leitor e leitora deve sentir o impacto da experiência que Carolina Maria de Jesus proporciona. O objetivo deste texto foi apenas ecoar o testemunho escrito da autora, e chamar atenção para suas questões jurídicas atuais e profundamente humanas, que às vezes ficam esquecidas diante das questões políticas do dia, das questões institucionais que nos parecem tão necessárias e urgentes, mas que muitas vezes colocam um véu sobre os problemas e sofrimentos tangíveis existentes em um Brasil que ainda pulsa e vive.

Ricardo Juozepavicius Gonçalves é Doutorando e Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.


JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Edição Popular, 1963.

[2]Mais informações sobre a vida e obra de Carolina Maria de Jesus neste vídeo elaborado pela FAPESP: https://www.youtube.com/watch?v=T0ncwWD1C9g

[3]Publicada em inglês com o título Childof The Dark.

[4]Manteve-se a ortografia original nas citações.

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