O medo do ventre livre: o que fazer com os negros?

FONTEPor Aline Najara da Silva Gonçalves, enviado para o Portal Geledés

Foi numa tarde de quarta-feira, no dia 22 de maio de 1867, na Sessão Imperial da Assembleia Geral Legislativa sob a presidência do Sr. Visconde de Abaeté, que Sua Majestade D. Pedro II proferiu, às 13 horas da tarde, a Fala do Trono. Tratava-se de um pronunciamento anual, onde o imperador abria a Assembleia Legislativa expondo suas expectativas para o ano em curso. 

Falas do Trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889

O foco do discurso naquela tarde foram a guerra contra o Paraguai e os esforços do governo brasileiro, do Exército, da Armada, da Guarda Nacional e dos Voluntários da Pátria para solucionar o conflito, bem como a busca de meios para sanar os déficits relacionados às “penosas circunstâncias” geradas pelas despesas com a guerra. 

A guerra, os esforços para solucioná-la e a crise financeira que se estabeleciam são fios de uma trama que, quando tecida, deixa evidente um nó difícil de desatar: o melhor modo de lidar com o elemento servil naquela segunda metade do século XIX.  

A preocupação em relação à mão-de-obra escravizada exposta pelo Imperador, certamente foi indigesta para parte dos legisladores ali presentes e pode ter mudado o conteúdo das conversas do fim de semana e até tirado o sono dos “augustos e digníssimos representantes da Nação”. Parecia inquestionável a D. Pedro II que a emancipação era a via mais segura para a condução da política do império e ele foi enfático ao afirmar: 

Trecho do pronunciamento do Imperador, na Fala do Trono de 22 de maio de 1867, sobre a necessidade de solucionar a questão servil.

Nota-se que a emancipação do elemento servil mostrava-se uma prioridade para a política imperial. Em meio a tantas dúvidas de como o processo deveria ser conduzido, os legisladores estavam certos de que tudo deveria ser calculado cuidadosamente para o bem da propriedade. Assim, a prioridade foi a promoção da entrada de imigrantes que pudessem substituir gradativamente a mão-de-obra, garantindo que a agricultura — maior fonte de renda do império — não fosse abalada. 

A onda negra que seria lançada sobre a sociedade brasileira com a extinção do trabalho escravo foi a causa principal das dores de cabeça e do medo daqueles senhores e políticos. “O que fazer com o negro?” parecia ser a pergunta que martelava a mente dos deputados após a fala do imperador. O andamento das discussões e debates em torno da emancipação ratificam a existência de uma sociedade profundamente marcada pela diversidade sociorracial e, como explicitou Célia Maria Marinho Azevedo, representada por “uma minoria branca, rica e proprietária e uma maioria não-branca, pobre e não-proprietária”. Aliás, a propriedade foi o eixo em torno do qual giraram todas as decisões e direcionamentos referentes à “questão do elemento servil”. 

O Projeto de Voto de Graças foi apresentado quatro dias depois da Fala do Trono, na sessão de 27 de maio. Ao que parece, a ideia de apoiar a decisão imperial não contemplou os interesses, tampouco as expectativas de muitos dos parlamentares, boa parte deles latifundiários escravistas, a quem a proposta de extinção do “elemento servil” certamente não agradara.  A Resposta à Fala do Trono foi discutida nas sessões de 4, 5, 7, 10, 12, 14, 15 e 17 de junho daquele ano e todo o ministério se fez presente à sessão de 04 de junho de 1867.

 Foi na Segunda Parte da Ordem do Dia que os parlamentares demonstraram suas primeiras impressões acerca da questão posta por Vossa Majestade. Sob olhares atentos e um profundo silêncio, Bernardo Avelino Gavião Peixoto iniciou sua fala afirmando ser a proposta de emancipação do trabalho escravo “uma verdadeira proclamação de guerra social”. Diante da instabilidade financeira da época que atingia, principalmente, a agricultura, a ideia de emancipação soou como uma incerteza para o futuro. 

A resposta dada ao pronunciamento do imperador naquele dia parecia impensada e incompleta para alguns daqueles homens, como o Avelino Gavião Peixoto. Ressaltando a necessidade de um debate mais aberto e que trouxesse à tona as impressões do Parlamento para a questão colocada, a interrogação que lançou foi direta: “Qual é, pois, o pensamento que domina, que esclarece, que define a presente situação?” Num discurso exaltado e apoiado por parte dos que ali estavam, Gavião Peixoto fez críticas à comissão de resposta à Fala do Trono e acusou o governo imperial de assumir um perfil desrespeitoso em relação aos legisladores.

A insatisfação de Gavião Peixoto e de outros deputados não surgiu inesperadamente. Estas negociações foram alavancadas com o fim da guerra contra o Paraguai e a proximidade da libertação do ventre da mulher escravizada. A proposta lançada pelo imperador e a consideração pela questão do “elemento servil” anunciavam a quebra de uma hegemonia da classe senhorial. Configurava-se ali o rompimento da inviolabilidade senhorial, que também permeou o debate em torno da emancipação. 

O pronunciamento de D. Pedro II foi seguido por uma série de debates dentro e fora do Parlamento. Com a emancipação da mão-de-obra escravizada, sugerida na Fala do Trono [e iniciada com a Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871], o Estado passaria a interferir numa relação que se entendia protagonizada pelos proprietários de trabalhadores escravizados e trabalhadoras escravizadas.

O medo dos efeitos da emancipação, as propostas para a manutenção do poder senhorial sobre libertos, a reação dos proprietários a uma possível abolição orquestrada pelo Estado… Nada disso era novidade na sociedade imperial brasileira. A “onda negra” que ocupou o imaginário das elites no processo da emancipação desaguou como um tsunami sobre os políticos do império, mas começou a se formar bem antes daquela Fala do Trono. 

Célia Maria Marinho de Azevedo, em Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX, revelou inquietações e projetos de emancipação elaborados desde 1821, bem antes mesmo do fim do comércio Atlântico, por vários homens letrados, políticos, cientistas e religiosos na segunda metade do XIX. No artigo Como pensar o elemento servil: o lugar dos libertos nas expectativas das elites após a emancipação, analisei, com o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, propostas e regras elaboradas por membros da elite escravista para assegurar seus privilégios e definir o lugar dos libertos na sociedade livre da escravidão, garantindo que as hierarquias sociais, políticas, econômicas e raciais existentes no período permanecessem nas décadas posteriores. 

Ao que parece, o século da emancipação trouxe transformações e permanências. Se, por um lado, revelou a nova face da escravidão, por outro, acentuou o temor pela perda da propriedade e dos privilégios, cuja principal garantia era o controle e poder mantidos com a exclusividade na condução das alforrias. A Lei n. 2.040 de 1871 trouxe com ela o pecúlio, a possibilidade de que o escravizado juntasse dinheiro e apresentasse o valor estabelecido para a sua alforria. E isso, por sua vez, alimentou um antigo medo, velho conhecido dos senhores escravistas: a liberdade irrestrita à gente negra. 

 

Assista ao vídeo da historiadora Aline Najara da Silva Gonçalves no Acervo Cultne:


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Ensino Fundamental: EF08HI18 (8º ano: Identificar as questões internas e externas sobre a atuação do Brasil na Guerra do Paraguai e discutir diferentes versões sobre o conflito); EF08HI19 (8º ano: Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas). 

Ensino Médio: EM13CHS101 (Analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais da emergência de matrizes conceituais hegemônicas (etnocentrismo, evolução, modernidade etc.), comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos). 

Aline Najara da Silva Gonçalves

Professora de História (UNEB – Campus XIII, Itaberaba) e doutoranda em História Social (UFRRJ). E-mail:  alinasigo@gmail.com. Instagram: @_najaragoncalves

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.
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