O mito do negro passivo cai por terra

Foto: Arquivo Revolta da Chibata.

O pesquisador Richard Santos, no artigo O negro objetificado na obra de Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes: uma análise das narrativas sócio-históricas na construção do pensamento social brasileiro, publicado na revista Africa e Humanidades, ao desmontar o espetáculo em volta da objetificação do negro na obra de Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, afirma a importante contribuição do marxista brasileiro Clóvis Moura em tal empreitada.

Por Gabriel Nascimento, do Justificando 

Foto: Arquivo Revolta da Chibata.

É a partir do trabalho desse pesquisador que buscamos neste texto destacar alguns pontos da excelente análise advinda de Clóvis Moura, não somente respondendo aos usos dos autores referidos, mas também de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque.

Como parece ficar claro com os argumentos de Richard Santos, a sociologia moderna brasileira está repleta de objetificação de toda ordem sobre o negro. Ao tratar dessas questões, o sociólogo Jessé Souza acusa a forte influência weberiana entre os principais pensadores brasileiros na modernidade. Na mesma direção de Richard Santos, ele não poupa ninguém, apenas Florestan Fernandes, este não poupado por Richard Santos em suas críticas.

O negro vem sendo objetificado na literatura científica brasileira na suposta resposta ao racismo biológico do século XIX. É preciso antes de tudo perceber a raiz conservadora de Gilberto Freyre, bastante ignorada por vários setores intelectuais da esquerda brasileira que passaram a utilizar, sem criticar, os termos “casa grande” e “senzala” de uma maneira tão naturalizada como se esses itens fossem fenômenos da natureza, como a chuva ou o sol.

Não obstante, a repetição de Gilberto Freyre é utilizada intimamente durante a Era Vargas, de maneira que, como este era nacionalista, usou a ideia de unidade morena para corroborar uma identidade nacional que unia todos os povos e raças. Talvez venha daí o uso mais direto de Gilberto Freyre, ao ignorar suas predisposições conservadoras, de maneira que a popularização de sua teoria se deu através de uma política de Estado na Era Vargas visando promoção de uma miscigenação que ignorava o sofrimento e a resistência histórica do povo negro.

Por outro lado, ao criticar essa versão de análise, Sérgio Buarque não avança. Em Raízes do Brasil, principal obra do autor, faz uso de uma crítica deliberada da cordialidade do brasileiro e elege o Estado como seu principal alvo. O problema dessa teoria é que ela entende o mito fundador de nossa brasilidade pela mesma ótica de Gilberto Freyre, não a desconstruindo. Porém, ao contrário dele, essa visão demoniza o equilíbrio e cordialidade, deixando entrever uma posição de passividade do povo brasileiro que não permitiria transformações mais radicais.

Quando digo que esse é o ponto de partida para a esquerda brasileira, isso se dá em três medidas fundamentais:

a) a ideia de submissão calcada na visão genética de submissão em nossa brasilidade, ignorando séculos de revoltas e movimentos insubmissos do próprio povo;

b) a visão do intelectual enquanto superior a essa cumplicidade com a cordialidade brasileira, que supostamente leva à inércia política desse povo;

c) a construção de um espaço de privilégio de quem analisa, não desnudando sua condição ao seu interlocutor-leitor, o que tem influenciado um espaço de análise da esquerda brasileira até hoje, de maneira que, mais do que ouvir o povo, de quem busca confiança, essa esquerda (com fortes raízes na branquitudedo Sudeste/Sul) apenas fala em nome desse povo, atribuindo a ele condições que supostamente não lhe permitem falar, como a falta de cidadania e conhecimento pleno de sua realidade.

Eu poderia dissecar neste texto todos esses argumentos (o que pretendo fazer em outros textos), mas pretendo apresentar brevemente alguns pontos acertadíssimos advindos da obra de Clóvis Moura que melhor respondem a Gilberto Freyre e Sérgio Buarque.

Em sua principal obra, Rebeliões na Senzala, Clóvis Moura, que vem de tradição não acadêmica, esgota os dados sobre os processos civilizatórios de insubmissão do povo negro ao trabalho escravo durante séculos. Em primeiro lugar, afirma ele, houve sempre resistência à escravidão onde o trabalho escravo mais se concentrou. Ou seja, em todos os lugares onde houve concentração do trabalho escravo houve resistência. A resistência ganhou qualidades distintas, desde a participação de negros forros, livres ou escravos em movimentos de independência do país, até a organização em torno de quilombos e guerrilhas.

Os negros, ao participarem da Inconfidência mineira, Cabanagem, Revolução Farroupilha, Balaiada, ou terem liderado a Inconfidência baiana, o faziam elegendo como prioridade a luta contra o colonialismo, visando que, com a independência, a abolição da escravatura seria o próximo passo de luta.

Como nos lembra Clóvis Moura, dificilmente houve algum movimento pró-independência do país sem a participação dos negros.

Entretanto, é com os movimentos mais radicais contra a escravidão que o papel do negro vai se delinear melhor. Onde houve concentração do trabalho escravo também se deram narrativas em jornais e documentos sobre sujeitos negros, aquilombados ou não, que cercavam pessoas (geralmente feitores, donos de fazendas etc.) na estrada a caminho de suas propriedades e roubavam mantimentos e armas, além de libertar os irmãos negros.

A formação de guerrilhas, urbanas ou não, tem relação simbiótica com o surgimento de quilombos, seja nas matas ou na própria área urbana, como é o caso do quilombo do Cabula, em Salvador. Como observamos ainda, esses sujeitos donos de sua história trabalhavam contra a escravidão entre si, mas também compuseram movimentos grandes, como se deu na Inconfidência baiana, que obteve apoio dos quilombos que iam de Salvador até Cachoeira. A consciência racial desses negros era impressionante, de maneira que líderes negros chegaram a criar reinados africanos na Bahia, enquanto outros se organizavam naquela que foi a primeira greve de trabalhadores no país, a revolta no Engenho de Santana, atual Rio de Engenho-Ilhéus, BA, em 1789 (no mesmo ano da Revolução Francesa).

Desmontar a tese cordial do negro submisso fica mais fácil quando a pesquisa precisa de Clóvis Moura alcança a organização dos quilombos. Os muitíssimos quilombos analisados em sua obra permitem concluir altos níveis civilizacionais de auto-organização, de maneira que alguns deles constituíram reinados, com exércitos, com mais de 20 mil homens e com duração de mais de 20 anos.

Não se pode negar a importância dessa tese para desconstruir os mitos em volta do racismo epistêmico reforçado através da obra de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque. O autor não somente mostra insubmissão, mas elevada capacidade de organização, como o que se deu na República de Palmares, um gigantesco complexo de quilombos que resistiu à escravidão durante mais de 20 anos na antiga Capitania de Pernambuco (hoje estado de Alagoas), com exército próprio e níveis hierárquicos complexos.

Estamos aqui falando não somente de auto-organização bélica, mas também de subsistência, através da alta qualidade de cultivo e de condições sexuais que desafiariam a moralidade constituída em volta da branquitudee da burguesia (como é o caso da poliandria presente na República, de modo que havia menos mulheres do que homens).

Uma tese que fala de estratégias e levantes do povo negro não pode ser ignorada durante muito tempo, e é de se abismar que o pensamento social brasileiro tenha feito isso de maneira tão natural durante quase um século. Por outro lado, esse mesmo pensamento social promove força ilocucionária racista toda vez que imagina o negro como parte integrante natural da atividade econômica do país nesses séculos sem produzir nenhuma crítica dessa condição.

Ignoram que o trabalho escravo não era e não é um fenômeno da natureza e veem sempre a “casa grande” e “senzala” numa dialética radical da branquitude

Em que essas “paisagens” são vistas a partir de um Sudeste no século XIX, depois de ocorrida a maior parte das revoltas populares e negras contra a escravidão, cujo debate da abolição teve absorção dos meios de comunicação e daqueles que já viam a escravidão como um prejuízo contra a atividade econômica do país e não como um processo imanente de direito do povo negro. Além disso, essa visão pare uma análise caolha e muito romantizada do negro.

É esse o negro da obra de Bernardo Guimarães, muitas vezes escrito como cúmplice do seu senhor. Ou então esses pensadores dinamizam uma visão nietzschiana da moral do escravo, não historicizando essa noção.

Por último, ignoram a máxima defendida por Clóvis Moura de que o fim oficial do trabalho escravo se deu através dos imensos prejuízos produzidos pelos negros ao sistema escravocrata durante séculos, através de levantes, quilombos e guerrilhas, e não através de posturas monocráticas e plutocráticas de meia dúzia de intelectuais do Sudeste.

É preciso, antes de tudo, dar voz a quem fala há muito tempo para os surdos epistêmicos, estes sendo aqueles que veem o racismo e o ignoram, tornando-se cúmplices dele.

Gabriel Nascimento é mestre em Linguística Aplicada pela UnB e doutorando em Letras pela USP. É autor de “O Maníaco das onze e meia” e “Este fingimento e outros poemas”. Atualmente é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. 

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