O movimento negro e a Constituição de 1988: uma revolução em andamento

Arte: Gabriela Lucena

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“Queremos proclamar a nossa abolição. Não é ódio, nem rancor, apenas um grito de liberdade!” Com essas palavras, Benedita da Silva, deputada constituinte brasileira pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ecoava a voz de negras e negros durante uma das audiências de formulação da Constituição Brasileira.

Por  Mayara Paixão, do Brasil de Fato 

A Câmara dos Deputados contava apenas com 11 congressistas negros em um universo de 559, segundo dados apresentados na pesquisa de Thula Pires intitulada Criminalização do Racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos, pela PUC-RJ.

Passados 30 anos desde que a Constituição foi promulgada, diversos estudos buscam entender como os direitos foram pensados pelos deputados constituintes em sua formulação. A pesquisadora Natália Neris, mestra em Direito, quis compreender como o movimento negro agiu para construir o documento.

“1988 é um ano importante para o movimento negro, porque é o ano do centenário da abolição. Era o momento em que o Estado brasileiro e a mídia tinham muito uma perspectiva de comemorar e celebrar a abolição, e esse movimento dizia: ‘não, não há nada que se comemorar, a desigualdade continua’”, explica.

Neris lançou, no final de 2018, o livro A voz e a palavra do movimento negro na Constituinte de 1988 pela editora Letramento, uma pesquisa bibliográfica do processo constituinte com enfoque na participação de negras e negros, sejam os organizados em movimentos populares ou aqueles que compunham o Congresso Nacional à época.

O processo de discussão da Constituição durou cerca de dois anos, desde a instalação da Assembleia Nacional Constituinte em fevereiro de 1987, até a promulgação da Carta Magna em outubro de 1988.

Para Benedita da Silva, a participação de negros e negras foi fundamental na formulação do documento que regeria um novo Brasil, agora sob uma democracia.

“A verdade é que a consciência negra brasileira foi importante para que nós tivéssemos tido realmente uma Constituição que não dependia pura e simplesmente da vontade do poder executivo, e sim transformar isso em programas e políticas sociais”, diz a deputada.

No que diz respeito à população negra, que representava cerca de 40% da sociedade brasileira na década de 1980, segundo dados do IBGE, a Constituição previa, apenas, no inciso 42 do Artigo 5°, que o racismo passa a ser enquadrado como crime inafiançável e imprescritível.

O que intrigou Natália Néris foi entender se essa era a única demanda elencada. “Será que o movimento focou no direito penal? Ainda mais o movimento negro que tem uma perspectiva super crítica das instituições, da segurança pública, das delegacias. Essa foi uma primeira inquietação”, conta a pesquisadora.

Integrantes da Convenção Nacional o Negro e a Constituinte: Maria Luiza Júnior, Carlos Moura, Hélio Santos, Milton Barbosa e Januário Garcia (Foto: Acervo pessoal/Maria Luiza Junior)

Redemocratização e a criação do MNU

Em um Brasil que se via saindo de uma ditadura de mais de 20 anos, grande parte dos movimentos sociais estavam reorganizando sua unidade e luta.

É no contexto dos anos 1970 que surge o Movimento Negro Unificado (MNU), que já soma 40 anos de atuação. Segundo a pesquisadora, a década marca também o ingresso, ainda que mínimo, de pessoas negras no ensino superior, um fator que influencia diretamente na organização do grupo.

A presença desses estudantes proporciona a troca de informações sobre manifestações culturais e políticas ao redor do mundo, intensificando o desejo e a necessidade de unificar e nacionalizar o movimento.

Em 1978, um ato em São Paulo, na Praça da Sé, denuncia as desigualdades raciais e a violência policial e marca o nascimento do MNU. “Quando se começa a discutir a necessidade de se escrever uma nova carta constitucional, esse movimento já estava aquecido, com pelo menos 10 anos de articulação”, ressalta.

Néris sublinha também o protagonismo das mulheres negras nesse período. Nomes como Lélia Gonzales e Helena Theodoro são destacados pela pesquisadora como de grande referência.

Organização popular e a bancada negra

Atento à necessidade de se organizar para encaminhar suas demandas, o movimento negro realizou, de forma auto-organizada, no ano de 1986, em Brasília (DF), a Convenção Nacional “O Negro e a Constituinte”.

Maria Luiza Junior, hoje aos 64 anos, é mestre em História Social e funcionária pública aposentada. Desde os anos 1970, milita no movimento negro e, na época, compunha o MNU. Ela foi uma das coordenadoras do processo.

“O processo de montar a convenção foi bastante complicado. A parte mais difícil de acontecer foi ouvir as vozes de todos que estavam ali representados.”, relembra ao falar das dificuldades. “Se não me engano, foram mais de 20 estados que mandaram representantes, então cada um tinha sua especificidade e, mais do que isso, era a primeira vez que a gente fazia um encontro nacional, era uma oportunidade ímpar.”

Apesar da ausência de apoio financeiro, o encontro aconteceu entre os dias 26 e 27 de agosto, e encaminhou um documento com uma série de reivindicações para o Congresso Nacional.

Depois de enviadas suas demandas, porém, o movimento negro organizado teve pouco poder de atuação no que seria ou não consagrado no documento constituinte. É neste momento que se fortalece a importância da bancada negra que, naquele momento, contava apenas com quatro parlamentares: Paulo Paim (PT/RS), Edmilson Valentim (PCdoB/RJ), Carlos Alberto Caó (PDT/RJ) e Benedita da Silva (PT/RJ).

Benedita da Silva no Congresso Nacional, em 1987 (Foto: Divulgação/Assessoria)

“Nós éramos poucos, mas tínhamos muita harmonia entre nós. Chegamos em uma casa onde éramos minoritários. Ninguém queria saber dessa discussão de negro, falavam que a gente queria dividir o país… “, conta a parlamentar que até hoje marca presença no Congresso em seu terceiro mandato respectivo como deputada federal.

As demandas

Néris explica que as demandas levadas pelo movimento eram plurais e não se restringiam unicamente à questão racial, mas também se relacionavam com problemas sociais que incidiam sobre a população negra.

A reivindicação mais lembrada até os dias atuais é a criminalização do racismo, que de fato ocorreu.

“Como o Estado brasileiro sempre teve um discurso de que aqui não existia racismo, ou problemas relacionados à desigualdade, dizer na Constituição que o racismo é crime é assumir que existe racismo no Brasil”, enfatiza a pesquisadora.

Além disso, o movimento apresentou a necessidade de estatização do sistema de saúde, descriminalização do aborto, estabelecimento de atividades produtivas e remuneradas aos presos, unificação das polícias civil e militar, além da inclusão do ensino de história da África no currículo escolar.

“Existia a percepção de que estávamos entrando em um novo regime, construindo um novo país, uma democracia, e a nossa história deveria parar de ser contada da perspectiva da escravidão”, explica.

A avaliação de Néris é de que, ao final do processo, a maioria das demandas que tinham como foco a população negra perderam a especificidade. No caso da educação, por exemplo, a Constituição previu que o ensino valorizasse todos os povos, sem frisar o povo negro e indígena.

A presença deste item na legislação, no entanto, possibilitou que os movimentos sociais demandassem outras leis a serem aprovadas entre as décadas de 1990 e 2000.

“Claro que não saiu como nós queríamos, porque as demandas são muitas e seguem até hoje. Mas tivemos no governo do Lula e no governo Dilma condições para poder fazer esse debate, que foi muito rico, porque era resultado da Constituição”, declara Benedita da Silva.

Da esquerda para a direita: Edimilson Valentim, Carlos Alberto Caó, Benedita da Silva e Paulo Paim (Foto: Retirada do site Brasil de Fato/Divulgação)

30 anos depois

Três décadas após toda a mobilização, a avaliação feita por Maria Luiza Júnior é que as altas taxas de encarceramento e de assassinato de negras e negros, bem como a desigualdade econômica, revelam graves falhas de um documento que pretendia salvaguardar todo e qualquer cidadão.

“Para nós, negros, essa Constituição não nos contempla. Contempla de uma forma geral, mas a gente vem percebendo o quanto ela é agressiva, o quanto afasta a comunidade negra”, afirma.

Já a pesquisadora Natália Néris entende que as incertezas e inseguranças que, porventura, se revelam frente ao novo ciclo político brasileiro devem estar acompanhadas da mobilização para que a Constituição Cidadã seja respeitada. Se a estratégia dos anos 1980 e 1990 foi a luta pela institucionalidade, o tempo atual pede uma reinvenção. “Estamos em um momento de revisão de estratégias e luta pelo cumprimento desse documento.”

Para Benedita da Silva, direitos fundamentais da Carta Magna elaborados pelos parlamentares constituintes e movimentos sociais estão sendo subvertidos à revelia de interesses pessoais. “O que nós temos hoje não é a chamada constituição cidadã de Ulisses Guimarães. O que nós temos a cada dia uma colcha de retalhos”, critica.

Apesar disso, Benedita entende que a trajetória de luta do movimento negro serviu e servirá como força estruturante da jovem democracia brasileira.

“Nós, negros e negras, estamos buscando o bem viver. E o bem viver não é nem tirar nada de ninguém e nem querer também ter até algumas coisas que eles têm. Temos uma outra cabeça e pensamento: nós queremos o bem viver para todos. Não significa apenas um carro, uma casa, uma televisão, mas também e principalmente a convivência, o respeito à religiosidade, ao gênero e à orientação sexual de cada um. Isso faz parte da democracia brasileira”, defende.

Três décadas após a Constituição Cidadã e 40 anos após a criação do Movimento Negro Unificado no país, a mobilização do povo negro segue revertendo estruturas, questionando poderes e construindo um Brasil mais democrático.

 

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