O ‘novembrismo’ da mídia

Cobertura do mês da Consciência Negra mostra quão racista somos e precisa ser ampliada

Por Flavia Lima, Da Folha de S.Paulo

Carvall

Na grande imprensa, o mês da Consciência Negra se consolidou como o período de se divulgarem dados sobre desigualdade entre negros e brancos.

O “novembrismo” não é necessariamente ruim, mas a concentração dos temas na ocasião traz frustração para quem gostaria de se ver representado e de ter seus problemas discutidos o ano todo.

Ao mesmo tempo, é um período em que se dá grande visibilidade aos mecanismos de exclusão da sociedade brasileira.

Com a ajuda de órgãos oficiais de pesquisa e universidades, dados sobre a inserção dos negros em diferentes áreas mostram de forma eloquente quão racista somos.

Num histórico rápido da relação entre a população negra e a imprensa, é possível dizer que os negros passaram a maior parte do século 20 confinados às páginas policiais, de esportes e de cultura dos jornais.

Não surpreende que reações importantes venham justamente do esporte, com destaque para a lúcida fala do narrador Júlio Oliveira, feita recentemente no SporTV, e do técnico do Bahia, Roger Machado.

O debate étnico-racial ganhou força apenas no fim do período da ditadura, sobretudo após o surgimento do Movimento Negro Unificado.

A inflexão na cobertura jornalística veio, porém, bem depois disso, a partir do debate sobre as políticas de ação afirmativa desenhadas para incrementar a participação de pretos, pardos e indígenas no ensino superior brasileiro.

Mais recentemente, discussões feitas nas redes sociais são seguidas pela grande mídia e têm conseguido pautá-la.

A abordagem dos temas também tem melhorado. Reportagens que insistiam em situar mudanças na chave da superação pessoal deram lugar a debates contextualizados.

Existe espaço para melhorias? Sim. Há alguns dias, soube-se que pretos e pardos, pela primeira vez, são maioria nas universidades federais.

O destaque merecia ter sido acompanhado de um maior refinamento dos dados, sob risco de se cristalizar a ideia equivocada de que as cotas já atingiram seu objetivo de colocar mais negros na universidade.

Discutiu-se pouco, por exemplo, qual a presença do grupo em cursos de maior prestígio.

Tapumes em frente ao terreno onde foram encontradas ossadas de antigo cemitério de escravos no bairro da Liberdade (Região Central); a maioria era formada por adultos, sendo duas mulheres (Foto: Rivaldo Gomes/ Folhapress)

No geral, os avanços na cobertura não se deram sem resistência, inclusive dos próprios jornais que, em editorial, se posicionaram contra a política de cotas. A Folha foi um deles.

Para ficar num exemplo mais recente, na mesma edição em que destacou a virada histórica dos negros no ensino superior, o jornal O Globo fez questão de se pronunciar em um pequeno espaço interno contra o que chamou de “injustiças” cometidas por um sistema de escolha, a política de cotas, feito com base em algo que não existe: a raça.

A divergência é bem-vinda, mas faltou dizer que a política de cotas não se guia por implicações biológicas (rechaçadas cientificamente), mas na ideia de raça como um marcador que desumaniza um grupo e que afeta toda a sua existência.

Pode haver falhas no processo? Sim, mas marcadores raciais têm se mostrado eficazes. Na dúvida, consulte um taxista, porteiro ou policial —extratos hábeis na definição de raça.

Outras coberturas feitas pela imprensa mudam em velocidade bem mais reduzida. A representação do negro associado à violência, por exemplo.

Não há nada mais sério ocorrendo no Brasil hoje do que a violência que incide sobretudo sobre a população negra. Segundo o IBGE, a taxa de homicídio entre jovens brancos de 15 a 29 anos é de 34 por 100 mil.

Sobe para 98,5 entre jovens negros. Se o recorte for masculino, a taxa de homicídio por 100 mil é de 63,5 entre os brancos e de 185 entre os negros.

A banalização do racismo ainda faz que pessoas negras, mortas em certos lugares, não gerem notícia impactante e que programas de televisão explorem a violência por meio de estereótipos, terminologia vulgar e racismo explicito.

O sujeito que é morto não é nomeado, deixa de ser visto como jovem ou trabalhador, ou tem antecedentes criminais ressaltados como se fossem justificativas para a morte.

Outro ponto a destacar é que negros não frequentam com regularidade as páginas de maior prestígio dos jornais, apartados do debate sobre medidas econômicas, cujos efeitos recaem principalmente sobre eles.

Mas há avanços. A própria Folha criou uma editoria de diversidade que vem divulgando conteúdo relevante, além de trazer colunistas para discutir essas pautas. Amplificar isso é fundamental.

Ausências criam uma capa de invisibilidade que repercute em todas as áreas e dimensões. A cobertura jornalística mais permanente, para além de novembro, justifica estudos e investimentos, ampliando os laços de solidariedade possíveis.

Feita por e para a elite, a grande imprensa sempre refletiu seus medos, preconceitos e preocupações. Ela ajudou a normalizar o quadro de desigualdades raciais e agora precisa contribuir para superar essa narrativa.

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