O precário à espreita

Foto: Marta Azevedo

Há processos supostamente modernos que são eufemismo para retrocessos em direitos trabalhistas

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

Uma mulher de classe média, nível superior, mãe solteira de um menino de 7 anos publica numa rede social criativo anúncio de “moradia compartilhada”. Em vez de aluguel, a moradora pagará pelo abrigo com afazeres domésticos e cuidados com a criança. O discurso moderno disfarça uma proposta de trabalho não remunerado e, por isso, degradante, tão antiga quanto a sociedade brasileira. Denunciada no tribunal da internet como sinhá do século XXI, ela confessa que propôs a contratação heterodoxa por não ter condições financeiras de pagar uma babá. Tira o sustento de uma relação trabalhista flexível, sem vínculo empregatício.

Não tratarei das relações coloniais que ainda marcam o trabalho doméstico no Brasil. Estão aí as babás vestidas de branco nas pracinhas, casas de festas e aeroportos, tal como mucamas de Debret, imagens que dispensam palavras. Não vou me ocupar da subordinação que mulheres de determinadas camadas sociais impõem às menos favorecidas. Renda e cor, não raro, se sobrepõem a gênero; individualidade dissolve sororidade. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, ensina o ditado. Não vou tratar do cinismo (ou ingenuidade) de chamar trabalho ilegal de moradia compartilhada, exploração de mão de obra de economia colaborativa.

Este texto é sobre como conceitos supostamente modernos são eufemismo para retrocessos em direitos trabalhistas. É sobre como profissionais subjugados tornam-se opressores de seus pares. É para não dizer que não falei de reforma trabalhista.

Câmara e Senado aprovaram e o presidente Michel Temer vai sancionar o conjunto de mudanças no arcabouço legal que, desde os anos 1940 do século XX, rege as relações de trabalho no Brasil. É verdade que, nos mais de 70 anos de vigência da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a economia brasileira mudou. Deixou de ser agrícola e industrial para caminhar na direção dos serviços, hoje responsáveis por 73% do Produto Interno Bruto (PIB). Novas possibilidades de contratação que incorporem jornada flexível, trabalho à distância e home office fazem sentido nesse novo mundo.

Mas a reforma do governo Temer talvez tenha se ocupado demais da redução do custo do trabalho — reivindicação do empresariado desde o fim da escravidão — em detrimento de outros aspectos do ciclo econômico. Quem analisa a reforma trabalhista sob a ótica da contratação tem muito a festejar. É óbvio que baratear admissões e demissões impacta o custo de produção das empresas. E pode tanto aumentar a competitividade como elevar margens de lucro.

Contudo, têm mais a ver com fé do que com materialidade as previsões de multiplicação dos empregos pós-reforma. A recuperação da economia ainda é modesta, a demanda muito fraca. É difícil determinar quantos postos de trabalho serão criados porque acordos negociados vão se sobrepor à legislação e desligamentos em comum acordo renderão aviso prévio e FGTS menores.

Grande parte do crescimento econômico experimentado pelo Brasil neste início de século esteve ancorado na expansão do emprego com carteira assinada. A certeza do salário, dos benefícios, da estabilidade deu confiança (até demais) às famílias para consumirem e se endividarem. É de se esperar que relações de trabalho mais fluidas desequilibrem essa equação. Se demissões serão menos custosas, se a renda flutuará com contratações intermitentes, se o salário médio cairá com novas possibilidades de admissão, o trabalhador se tornará mais conservador nos gastos.

Com o chapéu do vendedor de mercadorias e provedor de serviços, o empresariado pode se deparar com perda nas receitas. A insegurança no mundo do trabalho é anticíclica e nada solidária. Não incentiva consumo. Aumenta risco de inadimplência. Precariza relações. Apequena indivíduos.

 

-+=
Sair da versão mobile