O preconceito racial e a saúde emocional de crianças e adolescentes vítimas de crime de racismo

@KASUMA

O que você sente quando vê um negro ocupando um lugar na sociedade que ele não deveria ocupar?

Enviado por Ana Célia Nunes via Guest Post para o Portal Geledés  

@KASUMA

A pergunta é capciosa e preocupante à medida que tal pensamento – o do lugar que o negro não deve ocupar – toma também a mente da população supracitada e influencia o desenvolvimento emocional de muitas crianças e adolescentes que se enquadram nesse perfil.

Historicamente a sentença social dada à população negra é de que seus postos de trabalho devam ser apenas na limpeza, na cozinha, na segurança da empresa ou em outra função não ligada a atividade intelectual ou de maior investimento educacional, ou seja, nas camadas mais baixas da estratificação profissional e social.

Sou mulher, negra, nordestina e terapeuta ocupacional formada em uma das melhores universidades públicas federais do país e isso graças, em parte, ao tão criticado programa de cotas raciais. Minha entrada e permanência na universidade só foram possíveis devido ao incessante esforço em conciliar estudo com trabalho informal (explorado e mal remunerado) e bolsas de extensão e iniciação científica, dentre elas as de ações afirmativas, pois os recursos financeiros de uma mãe aposentada eram poucos para manter duas filhas que abandonaram seus empregos para entrar na universidade.

Hoje também tenho mestrado senso estrito em Terapia Ocupacional pela mesma universidade (UFSCar), atendo clientes em consultório particular, e já trabalhei em uma instituição de referência na saúde mental infanto-juvenil, que atendia crianças e adolescentes vítimas de negligencias e violências de todos os tipos (física, sexual e emocional). Com base nas experiências adquiridas neste último, quero refletir sobre a saúde emocional de crianças e adolescentes negras e, sobre o perigoso processo de rebaixamento da autoestima como resultado devastador na vida dessa população.

Ao ingressar nessa instituição, fui desafiada a criar e aprimorar técnicas terapêuticas ocupacionais que atendesse uma demanda de uma clientela extremamente fragilizada pelo seu histórico de vida, mas a necessidade de aprimoramento aconteceu, principalmente, pelo fato de grande parte dessa clientela renegar sua raça e ter vergonha de sua cor.

Eram crianças e adolescentes que mal iniciaram suas vidas, mas que já não conseguiam se olhar no espelho e aceitar seus corpos, cabelos e traços típicos de sua raça. Crianças que foram fragmentados por uma sociedade preconceituosa, que dita regras de beleza baseadas em fenótipos bem distantes da realidade do que se ver pelas ruas do país e das refletidas nos espelhos das maiorias das casas brasileiras.

A não aceitação do seu “eu” em minha nova clientela ficou evidenciada no meu primeiro dia de trabalho nessa instituição, onde em uma atividade em grupo com os adolescentes presentes – os quais tinham que entrevistar a nova terapeuta para conhecê-la melhor – em meio a alguns olhares de rejeição e resistências à participação na atividade surgiu à pergunta:
– Você gosta de sua cor?

Muito distante de ficar chocada, chateada ou acuada com a pergunta, eu já havia percebido que as rejeições naquele ambiente por parte de alguns dos adolescentes presentes não eram pessoais, tratava-se de um estigma inculcado durante toda a curta vida deles, mas que já resultava em danos imensuráveis a sua autoestima, autoeficiência, autoeficácia, formação de personalidade e visão do espaço que eles deviam ocupar na sociedade: a de que um negro não pode ocupar aquele lugar que eu estava ocupando, especialmente um negro com a pele preta, pois havia outros negros trabalhando na equipe técnica daquele lugar, mas suas peles não eram tão escuras quanto a minha, o que fazia com que os olhos dos pequenos não os enxergassem como negros.

Presenciei outras cenas de estranheza à presença da nova “tia” – “a tia neguinha” – e foi isso que me fez buscar informações, aprimorar e criar novas tecnologias terapêuticas ocupacionais para me aproximar da minha nova clientela.

Historicamente a Terapia Ocupacional (TO) tem trabalhado com populações menos favorecidas e excluídas da sociedade, como exemplo posso citar as pessoas com deficiências físicas e mentais, população em situação de rua, com história de abuso de álcool e outras drogas, dentre outras. Para a “tradicional” clientela da TO eu fui muito bem formada e dominava com tranquilidade as técnicas, o planejamento de metas e a construção de planos terapêuticos ocupacionais que os (re) inserissem em ocupações significativas e ambientes diversos que eles deveriam frequentar.
Mas, e com a população vítima da violência racial? Para essa população eu ainda não dispunha com tranquilidade de técnicas que fossem tão eficientes na profilaxia do problema, assim como o antibiótico é para uma infecção ou como a TO é na adaptação de recursos para inserção e o desempenho satisfatório das atividades de vida de uma pessoa com uma incapacidade física, com dificuldades de autorregulação emocional ou aquisição de habilidades sociais para a vida em sociedade.

Tratava-se de uma doença emocional, que eu mesma já fui acometida, gerada por uma disfunção social – o racismo – e que degradava a autoestima de meninas e meninos negros, fazendo com que verbalizassem o desejo de ser branco, de ter cabelos lisos, loiros e os olhos de outra cor. Para a minha doença eu já havia recebido o antídoto quando participei de grupos de ações afirmativas dentro da universidade, encontros que me ajudaram a enxergar quem eu estava sendo, o que a sociedade queria que eu pensasse que eu fosse e o que eu realmente era e, principalmente, o que poderia me tornar.

Mobilizei-me então a buscar literaturas que abordassem as questões raciais e sua influência no desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes, lancei mão das receitinhas caseiras que já usava no meu cabelo crespo e armado, que aprendi a gostar quando abandonei os alisamentos e a chapinha (apetrechos que usava em busca de aceitação) e montei discussões e reflexões lúdicas sobre os processos sociais na história do negro no Brasil; discussões sobre a influência da mídia racista na formação de um padrão único de beleza quase inatingível; sobre diversidade, alteridade…

Montei oficinas de beleza ligadas a grupos de discussão a fim de gerar consciência, reconstruir autoestima e criar uma imagem positiva do negro na sociedade, utilizei contos de fadas infantis de reis e rainhas da África, bonecas negras para falar sobre beleza e uma porção de outros apetrechos e tecnologias próprias da TO que eu já sabia e dominava muito bem. Deu certo!
Talvez se eu tivesse usado técnicas tradicionais e formais de acesso às emoções, eu não teria conseguido resultados positivos em tão curto prazo como os que eu consegui. Em pouco tempo foi possível observar algumas meninas abandonarem as chapinhas e assumir seus cabelos crespos, cuidar mais de seus corpos e aparência, melhorar a qualidade de suas relações e referir características positivas sobre sua aparência, o que antes não acontecia. No final do projeto “resgate da identidade” as meninas (clientela característica dos grupos) participaram de uma sessão fotográfica e construíram um “book” onde elas mesmas produziram suas maquiagens, arrumaram seus cabelos e expressaram com “caras e bocas” a emoção de se sentirem bonitas.
Nossa sociedade é violenta racialmente quase que por natureza! O racismo e a estratificação social tem feito parte do nosso cotidiano de forma tão natural que as pessoas têm atitudes preconceituosas e separatistas, às vezes acredito, que até sem intenção de tê-las, um exemplo oportuno aconteceu comigo neste mesmo ambiente de trabalho. Diante do resultado positivo das ações com minha nova clientela e com a introdução das receitinhas de cuidados com os cabelos e confecção de alguns acessórios de beleza, ouvi questionamentos tais como:

– “Porque você não usa seu talento para ganhar dinheiro? iria ganhar muito mais do que trabalhando aqui.”

– “Eu se fosse você faria um curso de cabeleireira ou costura e abandonava isso aqui, iria ganhar muito dinheiro arrumando cabelo ou costurando para fora.”

As citações supracitadas ressoam bem preconceituosas e na verdade são, mas o intuito de cita-las não é expor ao ridículo indiretamente as pessoas que verbalizaram a “dica” infeliz, e sim chamar atenção do leitor (seja ele branco ou negro) aos efeitos e a agilidade com a qual o preconceito cotidiano pode destruir emocionalmente histórias, pessoas, famílias inteiras e gerações a fio, especialmente quando esse processo se inicia na infância e na adolescência.
Qualquer cidadão que grita com uma criança negra que ela não pode estar naquele lugar, que sugere a um menino negro que suas habilidades (que ainda estão em processo de descoberta) servem apenas para ser jogador de futebol, ou sugere que a melhor opção para meninas pobres e negras é fazer cursos de manicure, cabeleireiro, ou ainda, que a única possibilidade de emprego é no supermercado, nas grandes redes de fast food, na cozinha, na limpeza, na segurança ou qualquer outra (não desmerecendo estas profissões), e que não os incentive a continuar seus estudos, subestimando-o por sua situação econômica ou aparência, está indiretamente (ou diretamente mesmo!) lhes impondo que a universidade, o shopping, a loja de roupa de grife ou a profissão de terapeuta, médico, professor, artista, advogado, juiz, engenheiro e etc… são profissões e lugares que eles não são bem vindos porque estes não são lugares ou postos que o negro deve estar ou ocupar.

Experiências negativas e depreciativas sobre a aparência e sobre as capacidades individuais são fortes desencadeantes de sintomas depressivos e dos mais diversos transtornos de comportamentos na infância e na adolescência. Com base nisso arrisco-me a hipotetizar que os efeitos nocivos da depreciação da autoimagem do negro na sociedade vivida desde a infância, fornece respostas às atitudes racistas e violentas de muitos seguranças, vendedores, policiais, recepcionistas, entre outros profissionais que mesmo sendo negro, não aceitam outros negros na loja de grife ou na lanchonete, nos shoppings ou em qualquer outro lugar onde trabalham e que seja considerado “lugar que negro não deve frequentar” como cliente, apenas como trabalhador.

Acompanhando as matérias publicadas neste portal, somado às experiências pessoais e com boa parte da minha clientela infanto-juvenil, arrisco afirmar que os danos emocionais causados em crianças e adolescentes negros resultantes do preconceito racial, devem ser tratados como um problema grave de saúde e que requer atenção especializada no tratamento e no acompanhamento do desenvolvimento emocional dessa população, afinal, trata-se de um problema que acomete crianças negras pobres e ricas, pois como já repercutido na mídia alternativa em vários casos, crianças pertencentes às classes mais elevadas da estratificação social também têm sofrido com o preconceito nos diversos locais que frequentam com seus pais.

Cada vez mais se torna imperativo um olhar especializado na promoção da saúde mental e emocional dessas crianças/adolescentes. É necessário o empoderamento desses pequenos cidadãos por meio de uma educação que valoriza a cultura e a beleza negra.

A ampliação dessa discussão é urgente

 

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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