O protagonismo negro perante a pandemia do Covid-19 – Outro olhar sobre a Conjuntura Nacional

FONTEPor Amauri Mendes Pereira, enviado para o Portal Geledés
Amauri Mendes. Foto Paula Giolito

As infinitas chibatadas e suas marcas não lhe amedrontaram.

Os estupros sofridos e a normalização deles, não lhe afrouxaram.

A sinhá carrasca, aquela que lhe cuspiu na cara, lhe pisou e invejou, não lhe tirou o brilho nem o calor.

Enterrar seus filhos aos gritos, laçados meninos, homens pequenos geniais, sábios, traquinos, 

Interrompidos por tiros, nada disso lhe desesperançou.

O tempo passou, você conheceu o livro, o livro lhe armou e, hoje, para acessá-la com êxito, 

é preciso usar, antes de tudo, com sua licença e por favor, sujeito a sim ou não… 

dô mó valor!

Preta Flor, de Milsoul santos

O ministro da saúde, Nelson Mandetta foi demitido. Saiu bem. Seu trabalho no enfrentamento do COVID-19 foi prestigiado por mídia e opinião pública. Novos dados e cenários insuflam os debates: “Bolsonaro é tão ruim e pernicioso, que deixou escorrer pelos dedos, uma oportunidade única de julgamento positivo sobre ações de seu governo”!!! “E o Mandetta, quais seus próximos passos? A direita vai investir nele como anti-bolsonaro?E o judiciário, vai bancar o isolamento? E o congresso”? “E o STF”?  “E o ‘Gabinete do ódio”? “Afinal, o Braga Neto está ou não no comando”?

Evidente a importância do contexto político-institucional, dos esforços para manter conquistas antirracistas e dos direitos humanos em geral, assim como de nos preparar para as eleições, etc, etc. Evidente ainda, que é necessário estar atentxs ao desenrolar dos movimentos em centros de poder, à complexidade de agentes progressistas influentes na sociedade civil, e em relação a segmentos não fascistas mais ao centro do espectro político-ideológico.

MAS… isso é suficiente?

Até quando os setores progressistas, inclusive a militância negra, estaremos amarradxs aos cenários e jogos de poder políticos-institucionais, oferecidos à grande maioria do nosso povo, através da mídia hegemônica, como questões principais na conjuntura?

Será difícil perceber que, se existe uma esquerda morta, como escreveu Wladimir Safatle¹, não é essa juventude negra e pobre que se agiganta perante a crise, com garra, consciência e ações, em favelas e lugares de pobreza? Que está inventando jeitos de atenuar o terror, que de crônico se tornou agudo? Isso sim me entusiasma: gente nossa em toda parte, articulando solidariedade e doações, esquemas de pegar e entregar comidas, produtos de limpeza, remédios, e outras necessidades de sempre, hoje pioradas, do povo pobre, de maioria negra. O desembaraço desse protagonismo surpreende telejornais e “formadores de opinião”! Logo servirão de exemplos para a intelectualidade mais engajada e influente, pronta a reconhecer valores, entender e explicar os significados mais profundos daquelas ações e do contexto em que estão imersas, e assumir o comando das novas articulações, enunciar novas palavras de ordem, pilotar o processo eleitoral!!!!

Que tal observar melhor e ver que “tudo andou”? A resistência de sempre, histórica e cantada em raps e sambas, a capacidade de “se virar”, de “dar a volta por cima”, está se mostrando e se tornando mais do que isso! Eles e elas produzem seus próprios pensares e agires, forjando potências muito além do enfrentamento à tragédia que se anuncia e promete ceifar tantas vidas! Enquanto entre os setores progressistas, se repetem as dificuldades de ir além das análises criativas, das palavras de ordem e da perplexidade, como vem acontecendo desde o golpe, face a derrotas sucessivas e à degeneração da “democracia” (que nunca valeu para espaços de pobreza, de maioria negra) e de outros aspectos civilizatórios tão caros prá quem tem acesso.

Tudo andou! O ciclo de governos progressistas foi resultado de acúmulos de “Marias, Mahins, Marielles, Malês”! Fez muito, sacudindo e colorindo espaços quase exclusivamente brancos, incentivando a criação de caminhos e alimentando sonhos de efetiva igualdade racial e social. Fez o melhor que pode:

– Insuficiente para evitar os retrocessos políticos-institucionais!

Tais retrocessos serão capazes de derrotar, também, o crescimento de importantes segmentos de lutas sociais, que incorporaram e aceleraram a Consciência Negra, como avanço no nível e na qualidade da consciência social e política?

Para a militância negra e antirracista isso é central na atual conjuntura e em qualquer perspectiva, para a reconstrução das lutas políticas e sociais. Também é decisivo para uma geração de militantes negras e negros (que se construiu em paralelo ao crescimento dos setores progressistas, pós ditadura),que só ganhou até agora: ajudou a vencer a ditadura, colocou em xeque o mito da democracia racial, interagiu com a ancestralidade e com as lutas negras em África e em toda parte do mundo e compôs a noção de Consciência Negra, inaugurou a institucionalidade e a promoção da igualdade racial e a “era das ações afirmativas”!!!

– E tudo isso se mostra suficiente!!!

As tochas estão nas mãos das gerações atuais de militantes negras e negros: “fogo na Babilônia”!²

– Consolidar a Consciência Negra e social e o papel pedagógico que o Movimento Negro vem cumprindo na sociedade brasileira!³

– Construir espaços EFETIVOS de diálogos com nosso povo negro, pobre, indígena!

– “Ninguém conscientiza ninguém, ninguém se conscientiza sozinho, isso acontece em comunhão”!!!4

– DIÁLOGOS, não “lacrações” – Construir conhecimentos e gerar estratégias JUNTXS! 

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1- https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html

2-  Referência à canção de Bob Marley, em relação à sociedade degradada.

3- Viva o livro “O Movimento Negro Educador”, de Nilma Lino Gomes!!!

4-  Viva Paulo Freire!!!!


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
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