O que aconteceu 6 meses após a decisão do STF que criminalizou a LGBTfobia?

ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES Em junho de 2019, o STF decidiu que a LGBTfobia deve ser equiparada ao crime de racismo até que o Congresso crie uma legislação específica sobre essa violência.

“As delegacias não estão preparadas para receber a população LGBT”, afirma vítima de homofobia que teve caso registrado como “perturbação do sossego”.

Por Marcella Fernandes e Andréa Martinelli, do Huffpost

Em junho de 2019, o STF decidiu que a LGBTfobia deve ser equiparada ao crime de racismo até que o Congresso crie uma legislação específica sobre essa violência. (Foto: Anadolu Agency via Getty Images)

“A questão da homossexualidade, surgida em um momento no qual ainda não se debatia o tema pertinente à ‘ideologia de gênero’, tem assumido, em nosso País, ao longo de séculos de repressão, de intolerância e de preconceito, graves proporções que tanto afetam as pessoas em virtude de sua orientação sexual (ou, mesmo, de sua identidade de gênero), marginalizando-as, estigmatizando-as e privando-as de direitos básicos, em contexto social que lhes é claramente hostil e vulnerador do postulado da essencial dignidade do ser humano.”

A frase citada acima está em uma das 155 páginas do voto do ministro Celso de Mello, decano do STF (Supremo Tribunal Federal), relator no processo que levou o tribunal a decidir, em 13 de junho de 2019, pela criminalização da LGBTfobia. No julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), a corte equiparou ações de discriminação contra LGBTs a atos de racismo.

Considerado um marco histórico na defesa de direitos LGBTs e uma das maiores realizações do movimento em 2019, seis meses após o julgamento, a decisão, por enquanto, tem impacto mais simbólico do que efetivo, de acordo com juristas e ativistas que atuam na área ouvidos pelo HuffPost Brasil.

A questão da homossexualidade (…) tem assumido, em nosso País, ao longo de séculos de repressão, de intolerância e de preconceito.
Celso de Mello, ministro do STF, em julgamento sobre criminalização da LGBTfobia

Para o ministro Celso de Mello (ao fundo, à esquerda) “atos homofóbicos são formas contemporâneas de racismo”. (Foto: Divulgação/STF/Retirada do site Huffpost)

De acordo com relatos colhidos pela reportagem, há casos em que as delegacias se recusam a registrar episódios como homofobia. Foi o que aconteceu com Fernando*, em Recife (PE). Após uma discussão com o vizinho em que foi alvo de ofensas homofóbicas, ele procurou a polícia, mas o caso foi registrado apenas como “perturbação do sossego e da tranquilidade pública”.

De acordo com o boletim de ocorrência registrado em 27 de novembro, Fernando foi chamado pelo vizinho de termos como “bichona safada”. A vítima também relatou ao HuffPost que ouviu expressões como “raça miserável dos inferno” e “esses doentes” para se referir a homossexuais.

Fernando disse que o escrivão na delegacia o tratou “muito mal”. “As delegacias não estão preparadas para receber a população LGBT”, disse. Ele procurou o Ministério Público, que recomendou que a Polícia Civil registrasse o caso como LGBTfobia. “Considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal, a conduta do noticiado pode ser enquadrada no artigo 20 da Lei 7.716/89”, diz ofício de 13 de dezembro. No documento, o Ministério Público também solicita a instauração do inquérito policial para dar prosseguimento às investigações.

Por que delegacias não registram LGBTfobia?

Na avaliação de Paulo Iotti, advogado no processo que resultou na criminalização da homofobia e transfobia pelo STF, há delegados que têm interpretado que a decisão do Supremo não incluiria a injúria racial.

“Nessa dicotomia, racismo abarca ofensas à coletividade do grupo em questão [negros] e injúria racial, ofensas a indivíduos do grupo, para simplificar. Só que é simplesmente absurda essa interpretação. Se é racismo, é evidente que é injúria racial”, afirmou à reportagem. Ele citou julgamento do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que reforça esse entendimento.

“Certamente por essa resistência, normalmente por quem discorda da decisão do STF e por isso claramente quer dar a ela a menor eficácia possível, torna-se difícil fazer boletins de ocorrência de homotransfobia, ou eles ficam como injúria simples, cuja pena é ínfima e, assim, absolutamente ineficaz”, completa Iotti. A pena para injúria simples é de detenção de um mês a seis meses ou multa.

Certamente por essa resistência, normalmente por quem discorda da decisão do STF e por isso claramente quer dar a ela a menor eficácia possível, torna-se difícil fazer boletins de ocorrência de homotransfobia.
Paulo Iotti, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Devido a essa dificuldade, advogados ligados à promoção de direitos de pessoas LGBTs têm estudado a possibilidade de apresentar embargos de declaração ao STF, um tipo de recurso para que o tribunal detalhe como a criminalização deve ser aplicada. Também é possível apresentar uma reclamação (um tipo de ação) ao Supremo, se houver decisões judiciais de segunda instância nesse sentido.

Em outra frente, a Aliança Nacional LGBTI deve lançar em maio de 2020 uma cartilha e uma campanha com o “cumpra-se” para orientar pessoas a fazer boletins de ocorrência nas delegacias. A organização tem participado de um grupo de trabalho com a Secretaria de Segurança Pública no Paraná que discute questões como a adaptação dos boletins de ocorrência.

A Aliança também deve fazer uma consulta ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para esclarecer como a decisão do STF deve ser aplicada. “Quando algo é definido em Brasília, até chegar às delegacias tem um delay e até chegar à comunidade também”, afirmou ao HuffPost Brasil o diretor-presidente da organização, Toni Reis.

Questionado pela reportagem, o CNJ respondeu, por meio da assessoria de imprensa, que ”não tem atuação junto às polícias, apenas aos órgãos do Poder Judiciário. Diante disso, não se manifestará sobre o assunto”.

Toda cultura vai mudando a passos de tartaruga e a gente tem que ir ocupando os espaços para evitar retrocessos.
Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI.

Em 2013, o Conselho emitiu uma resolução que regulamentou como os cartórios deveriam registrar casamentos homoafetivos. Na época, muitos estados não confirmavam sequer uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero, ainda que, em 2011, o STF tenha garantido esse direito no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).

Apesar das dificuldades, Toni Reis aponta como um avanço o julgamento deste ano. “Foi uma grande vitória para nossa comunidade. Estamos comemorando e sempre quando há uma decisão, há resistência, mas as resistências estão diminuindo, assim como foi com o casamento [homoafetivo]. No primeiro momento tinha resistência e agora estamos batendo recordes de casamentos”, disse. “Toda cultura vai mudando a passos de tartaruga e a gente tem que ir ocupando os espaços para evitar retrocessos”, completou.

Caso de homofobia chega ao Tribunal Superior do Trabalho (TST)

Após sofrer ofensas homofóbicas por 8 meses quando trabalhava como operador de caixa, Udson da Silva Mafra, resolveu, em 2015, pedir um ressarcimento por danos morais. De acordo com o processo, o funcionário “sofreu bullying pelos funcionários de hierarquia superior, bem como de seus próprios colegas de trabalho. Todos os dias, ao chegar no trabalho o reclamante era alvo de chacotas por causa da sua voz e pela sua orientação sexual. A situação piorava quando o reclamante se dirigia, no intervalo, para o vestuário, onde alguns funcionários, tanto chefes de seção como outros funcionários, que sempre estavam no mesmo ambiente o chamavam de ‘voz fina’, ‘bicha’, ‘viado’, ‘gay’.”

O ambiente levou Hudson a desenvolver problemas de saúde gastrointestinais. Na primeira instância, a Justiça Trabalhista do Rio Grande do Norte decidiu que a empresa Sendas Distribuidora S.A. deveria pagar uma indenização de R$ 30 mil. Devido a recursos apresentados pela companhia, contudo, o caso chegou ao TST (Tribunal Superior do Trabalho), em Brasília.

No julgamento em outubro de 2019, a advogada responsável pela sustentação oral, Cintia Cecílio, ressaltou que “caso os fatos tivessem ocorrido atualmente, essa empresa e todos os colegas de trabalho de Udson estariam agora, respondendo criminalmente em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal que criminalizou a homofobia”.

A criminalização nesse caso não era possível porque a decisão do STF foi após as ofensas e a legislação penal não pode retroagir de forma a prejudicar o réu.

Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB no Distrito Federal, Cintia Cecílio contou que, durante o julgamento, trabalhou para sensibilizar os ministros a sentir o sofrimento de Hudson. “Ele estava sentadinho na fileira do meu lado e chorou todo tempo, de soluçar. Dá para entender um pouco o desespero dele. Ele falou que parecia que a vida dele estava parada e só ia andar quando isso se resolvesse”, disse à reportagem.

No recurso, a empresa pedia que a condenação fosse revertida ou, caso não fosse possível, para reduzir o valor da multa. A relatora, ministra Dora Maria da Costa, votou para que o valor diminuísse para R$ 15 mil. Após argumentações da defesa, contudo, os outros dois magistrados votaram no sentido contrário. “Um dos ministros que divergiu e disse que tem uma mulher trans no gabinete dele e que ele sabe qual a dificuldade”, contou a advogada.

Vejo que a população LGBT ainda tem uma resistência em procurar ajuda, em registrar [boletim de ocorrência]. Ainda existe um medo.
Cintia Cecílio, Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB no Distrito Federal

Na sustentação oral, Cintia disse que “como mulher, homossexual que também sou, e que também já sentiu na pele o peso que a discriminação em função da minha orientação sexual fez comigo enquanto trabalhadora” sentia “profundo acolhimento ao processo discriminatório experimentado pelo Udson, que viveu momentos de total exclusão, chacota, diminuição de sua capacidade laboral enquanto ser humano, por única e exclusivamente sua orientação sexual”.

De acordo com a advogada, a majoração da indenização concedida seria uma forma de educar as empresas para que elas “entendam que este tribunal e a Justiça brasileira não vão mais tolerar atitudes homofóbicas no ambiente de trabalho”.

Os números da discriminação contra LGBTs no Brasil em 2019

Segundo dados mais recentes registrados pelo Disque 100, canal de denúncias oficial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), o Brasil registrou 513 denúncias de violência contra a população LGBT entre janeiro e junho de 2019.

Em comparação com 2018, quando 713 casos foram computados, o número de casos foi 28% menor. Segundo o MDH, a quantidade de denúncias vem caindo ano após ano desde 2015. Porém, o próprio ministério pontua que esta queda não significa uma redução nos índices de violência contra esta população, mas sim, a subnotificação das ocorrências.

Esta escassez de dados ficou explícita no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Pela primeira vez, o relatório traz levantamento sobre esse tipo de violência via Lei de Acesso à Informação, e menos da metade dos estados brasileiros apresentaram os dados de homicídios, estupros e lesões corporais dolosas referente à essa população.

Apenas dez dos 26 estados brasileiros apresentaram números referentes a registros de homicídios; 11 trouxeram dados sobre estupro e nove sobre lesão corporal dolosa. Todos os estados do Norte, com exceção de Tocantins, não responderam ao pedido de informação e a maioria dos estados respondeu apenas parte da solicitação.

Mesmo com a dificuldade em obter os dados, o estudo aponta que dez estados contabilizaram 99 homicídios dolosos contra população LGBT em 2017 e 109 no ano passado, contabilizando aumento de 10%. O aumento foi mais tímido em lesões corporais dolosas: passando de 704 em 2017 para 713 em 2018.

Também neste ano, o Atlas da Violência do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) incluiu dados sobre esta população pela primeira vez. O estudo aponta que aumentou 10% o número de notificações de agressão contra gays e 35% contra bissexuais de 2015 para 2016, chegando a um total de 5.930 casos, de abuso sexual a tortura.

A avaliação é de que a situação tem se agravado e que a população sofre de invisibilidade na produção oficial de dados e estatísticas.

A pesquisa utilizou como base de dados o Sinan – sistema de dados do Ministério da Saúde – e o Disque 100, que é vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Dados do Ministério da Saúde apontam que, entre 2015 e 2016, aumentou o número de episódios de violência física, psicológica, tortura e outras violências contra bissexuais e homossexuais, sendo a maioria das vítimas solteiras e do sexo feminino.

Já em relação aos autores das violências, 70% eram do sexo masculino. Ao todo, foram notificadas 5.930 situações de violência contra a população LGBT.

O número de homicídios denunciados ao Disque 100 subiu de 5 em 2011 para 193 em 2017. Já as lesões corporais aumentaram de 318 em 2016 para 423 em 2017, passando por um pico de 783 casos em 2012.

Para o Ipea, o aumento não se deve apenas à maior divulgação do Disque 100, porque não foi verificado comportamento semelhante nos dados de outras minorias que buscaram o serviço, como idosos, moradores em situação de rua e crianças e adolescentes.

Apesar da vitória no TST, Cintia Cecílio aponta algumas barreiras na luta contra a LGBTfobia no Brasil. “Trabalho com direito homoafetivo e de gênero e não conheço nenhum caso após a criminalização. Atendi um cliente essa semana que é um homem trans demitido e acredita que tenha sido em razão dessa mudança de gênero”, afirmou.

Na época, a vítima não havia decidido se seguiria com o processo devido à dificuldade de provar que a demissão teve essa motivação. “Vejo que a população LGBT ainda tem uma resistência em procurar ajuda, em registrar [boletim de ocorrência]. Ainda existe um medo”, completou.

*O nome fictício foi usado para preservar a identidade da vítima.

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