A coluna Mulheres em Movimento entrevistou Carla Akotirene, bacharela em serviço social, mestra e doutoranda em estudos sobre mulheres, gênero e feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre o livro O que é Interseccionalidade?
Por: Carla Batista no Folha Pe
A coluna Mulheres em Movimento entrevistou Carla Akotirene, bacharela em serviço social, mestra e doutoranda em estudos sobre mulheres, gênero e feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre o livro O que é Interseccionalidade? A publicação será lançada nos próximos meses com a sua presença, em diversas cidades do país. O livro se encontra em pré venda, através do site da Editora Letramento: Grupo Letramento.
Carla Akotirene foi a primeira pessoa da sua família a chegar à universidade graças a conquistas que, nem bem se concretizaram amplamente, se encontram ameaçadas. O livro pode nos ajudar a assimilar a dimensão dessas conquistas e ameaças. É também uma das mulheres negras que “rompeu com a passividade das leituras e buscou o movimento da escrita”. Compartilhei esta frase da colunista do Nexo Giovana Xavier, quando ela se referiu a Conceição Evaristo, nossa eleita para a Academia Brasileira de Letras. Carla Akotirene é uma das pessoas que produzem conhecimentos que precisam ser compartilhados, compreendidos e assimilados para que o mundo fique melhor. Boa leitura. Comente. Compartilhe. E leia o livro!
CB: Nos fale um pouco sobre a sua trajetória.
Akotirene: Sou cria do Instituto Steve Biko. Tanto do Cursinho pré vestibular quanto do Projeto POMPA/CEAFRO. O primeiro é uma ação afirmativa com objetivo de inserir negras/os oriundos de escola pública e de baixa renda familiar nas Universidades, mediante conteúdo sobre cidadania e consciência negra, disciplina obrigatória no Steve Biko. O POMPA foi uma ação pioneira no Brasil, em 2004, resultante de parceria das fundações Fulbright/Loreley Williams e CEAFRO (Programa de Educação Racial e de Gênero do Centro de Estudos Afro Orientais da UFBA) na qual 21 jovens negros/as selecionados/as passaram por uma escola de formação que incluía estágio supervisionado com figuras públicas negras, intelectuais negras e parlamentares negros, sobre em quais condições estruturais podemos ingressar na administração pública, universidades e governanças, sem corromper princípios de militância antirracista e em prol da comunidade negra. Tais organizações me proporcionaram densa e aprimorada formação política para a ocupação de espaços estratégicos, a fim de abrir portas para outras pessoas negras.
A própria formação intelectual acadêmica é consequência desses investimentos formativos. Luiza Bairros e Vilma Reis – com quem trabalhei – Matilde Ribeiro, Nazaré Mota, Makota Valdina, Valdecir Nascimento, Silvio Humberto, Hélio Santos, Joaquim Barbosa, Valdo Lumumba, foram/são os intelectuais responsáveis pelo delineamento ético-político que me impulsionam para a academia. Sou pouco destinada à credencial de mestra ou doutoranda em estudos feministas, estou mais comprometida com descolonização epistêmica.
As experiências políticas foram inúmeras. Não posso deixar de citar a coordenação nacional da Campanha Contra o Genocídio da Juventude Negra/Bahia, resultante do Encontro Nacional de Juventude Negra (Enjune) e seu Fórum Nacional. Ainda politicamente atuei como articuladora do primeiro Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas e do Congresso Nacional de Negras e Negros, numa proposta de criar um partido negro. Sem dúvidas, sem este percurso de militância não seria hoje uma escritora da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Tais experiências desestabilizaram a tendência intelectual reducionista de antes, quando o olhar sobre o marcador de raça estava isolado de outras tecnologias de opressão.
Durante a graduação na Universidade Católica de Salvador, aonde ingressei com a nota do Enem e fui contemplada com bolsa integral no terceiro semestre, idealizei o Núcleo Matilde Ribeiro (Numar). O objetivo do Numar, ao lado do Núcleo Makota Valdina, era combater o racismo na Universidade, propor políticas de assistência aos estudantes negros/as e disputar conteúdos curriculares do ponto de vista racial. Naquela época a ex-ministra de igualdade racial compôs este processo no qual procuramos mostrar metodologicamente como o foco teórico na produção marxista inviabilizava as abordagens profissionais para negros e mulheres, usuários/as majoritários /as dos serviços prestados pelas assistentes sociais.
No mestrado em Estudos Feministas (PPGNEIM/UFBA) vivenciei um período de exaustivo racismo epistêmico, anulação intelectual e disputas de narrativas que motivaram no doutorado criarmos a Opará Saberes, iniciativa de instrumentalização das candidaturas negras, especialmente de mulheres negras, nos processos teóricos e metodológicos do mestrado e doutorado, apoiada por pensadoras negras como Zelinda Barros e Lívia Vaz, parceiras de longa data.
CB: O que é interseccionalidade, tema do seu livro que estará sendo lançado?
Akotirene: Interseccionalidade é uma ferramenta metodológica disputada na encruzilhada acadêmica. Trata-se de oferenda analítica preparada pelas feministas negras. Conceitualmente ela foi cunhada pela jurista estadunidense, a professora da teoria crítica de raça Kimberlé Crenshaw, no âmbito das leis antidiscriminação. Sensibilidade analítica, a interseccionalidade completa no próximo semestre 30 anos, quando a sua proponente teorizou a sugestão histórica pensada pelo movimento de mulheres negras. É uma ferramenta teórica e metodológica usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí, que imbricadas repetidas vezes colocam as mulheres negras mais expostas e vulneráveis aos trânsitos destas estruturas. Infelizmente agora sofre os perigos do esvaziamento, pois caiu no gosto acadêmico das branquitudes. Fala-se muito de feminismo interseccional sem trabalhar o paradigma afrocêntrico, de forma desconexa da origem, fundamento e propostas epistemológicas das feministas negras.
CB: Como isso se relaciona com os seus estudos acadêmicos?
Akotirene: No mestrado eu estudei interseccionalidade no Conjunto Penal Feminino de Salvador. Lá, comprovei que a prisão é um microcosmo de violências amplas, subscrita de conflito entre Lei de Execução Penal de 1984 e Lei Maria da Penha de 2006. Há excesso de mulheres negras encarceradas que não conseguiram negociar com a policia a impunidade quando se opuseram às violências de gênero praticadas contra elas. Há outra parcela presa porque seus maridos as obrigaram a levar drogas ou celulares na vagina para que eles preservassem masculinidades hegemônicas no tocante à sexualidade ou fossem os administradores das galerias e circulação dos bens e serviços. A violência de gênero é sempre o pano de fundo, principalmente quando estamos falando de homicidas de agressores. Defender a prisão não dá conta de perceber toda a variedade de intersecção de classe, raça e território.
Os religiosos do candomblé, no papel de assistência religiosa às internas, diferente dos de outras religiões, são tratados como perigosos, elegíveis às revistas vexatórias do tipo que inspeciona o ânus em busca de entorpecentes, enquanto neopentecostais e católicos incorrem na reprodução do racismo religioso. Nas penitenciárias, como a semântica penitência sugere, as lésbicas e trans hegemônicas estupram as mulheres ladys, sem que estas últimas possam dar queixa usando o recuso da Lei Maria da Penha. Afinal, agressores/agressoras já estão privados de liberdade. Mulheres negras não recebem quaisquer benefício de remissão da pena e indulto sem antes passarem pela seletividade racial nas funções de trabalho. As brancas destinadas ao administrativo, enquanto as negras são mantidas nos trabalhos pesados.
CB: E agora no doutorado, qual o seu tema de trabalho?
Akotirene: No doutorado estou propondo um estudo comparativo entre as lógicas de racismo e sexismos institucionais nas prisões masculinas e prisões femininas, mais uma vez à luz da interseccionalidade, para compreender os fracassos da lei, das retóricas de militâncias feminista, antirracista e execução penal. A argumentação toda é para comprovar o engodo da ressocialização e dizer que formação técnica de políticas de promoção da igualdade e contra o racismo institucional não serve para a
prisão, haja visto que sem racismo não existiria prisão.
CB: Fale mais um pouco…
Akotirene: A ideia de racismo institucional concebe que uma instituição não dispõe de atendimento adequado para pessoas negras, então a instituição prisional teria que mudar conjunturalmente pra atender bem os/as usuários/as. O que eu estou afirmando é que o discurso de formação de servidores/as no sentido de prevenir e combater o racismo institucional é engodo, já que a prisão serve para legitimar o Estado Penal, regulador das discriminações raciais. Logo, nenhum/a usuário/a quer uma prisão sem racismo. A prisão é o próprio racismo. Como já nos disse Hamilton e Carmichael: é prática antinegros, e segundo as pesquisadoras Angela Davis, Juliana Borges e Ana Flauzina, o sistema penal precisa da seletividade racial e etiquetamento para poder funcionar bem. É por isto, por exemplo, que o negro desempregado é capturado para trabalhar nas prisões, numa lógica do capital da punição.
CB: Quais são os desafios atuais que você vê para os movimentos de mulheres?
Akotirene: Do meu espaço de atuação, vejo que precisamos conseguir engajar processos ativistas para dentro da academia, criar estratégias de disputa de conhecimento fora da matriz Europa Ocidental e Estados Unidos, bem como evitar legitimidades de academistas negras fora do lugar epistêmico para dentro dos movimentos sociais. Digo isso a partir de uma perspectiva descolonial. A Universidade precisa do racismo para investir na continuidade do colonialismo. Vejo pesquisadoras negras autorizadas/legitimadas pelo argumento da visibilidade negra na produção teórica, contudo elas seguem presas às correntes ocidentais. Somos nós, militantes descolonias, que devemos ir pra academia e não os/as acadêmicos/as {mesmo negros/as} usarem a interseccionalidade para respaldo ativista epistemicamente situado do lado Norte Global.
CB: Para terminar, fale um pouco mais sobre o seu livro…
Akotirene: No meu livro demonstro como a interseccionalidade, enquanto ferramenta teórica e metodológica, permite-nos enxergar na colisão das estruturas do racismo, do capitalismo e do cisheteropatriarcado, a interação simultânea das avenidas identitárias. Além do fato de feminismos brancos fracassarem na tentativa de socorrer as vítimas negras, tendo em vista a forma como empregam o racismo nas suas análises e propostas. Igualmente, o movimento negro falhar pelo seu caráter machista, quando apresenta ferramentas metodológicas pensadas para socorrer exclusivamente o homem negro.
* Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira do Sul).