O que o governo Lula deve saber sobre violência sexual infantil

Há questões urgentes, como riscos da educação domiciliar e direito ao aborto

FONTEPor Luciana Temer, da Folha de S. Paulo
Luciana Temer é presidente do Instituto Liberta e professora da PUC-SP (Foto: Keiny Andrade/Folhapress)

O início de um novo governo representa uma chance enorme de pensar estrategicamente questões importantes para o país. Algumas são urgentes, outras de construção a médio e longo prazo. Na condição de diretora-presidente do Instituto Liberta de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, gostaria de ajudar a jogar luz em questões urgentes que conversam diretamente com essa temática, apesar de às vezes não parecer.

Vamos começar com a que nós consideramos a mais importante delas: uma eventual aprovação da lei que permite a educação domiciliar. Já tivemos a oportunidade de falar sobre isso aqui neste espaço, quando o projeto de lei ainda estava em tramitação na Câmara dos Deputados. Infelizmente, a nossa voz e de tantas outras organizações não foi ouvida, e o PL 1.388/2022 foi aprovado pela Câmara em 19 de maio (como PL 3.179/2012) e está hoje na Comissão de Educação do Senado.

Nosso argumento contra a aprovação da possibilidade de os pais não mandarem os filhos e filhas para a escola é bem objetivo: a violência contra crianças e adolescentes é preponderantemente intrafamiliar. Se fizermos o recorte só dos dados de violência sexual publicados no Anuário Brasileiro de Segurança 2022, veremos que mais de 61% dos estupros registrados em 2021 foram contra menores de 13 anos de idade, sendo que 40,8% dos estupradores eram pais e padrastos; 37,2% irmãos, primos, tios e outros parentes; e 8,7% avós. Acho que são dados autoexplicativos. Se a criança não vai para a escola, a chance de ela poder contar sobre uma violência intrafamiliar, ou alguém perceber, diminui muito. A escola não é só um espaço de aprendizado formal, mas um espaço de proteção da criança.

Ainda na ótica da escola como espaço de proteção, o atual presidente, no apagar das luzes, editou a medida provisória 1.140, que visa impedir que qualquer questão ligada à sexualidade seja discutida no ambiente escolar, o que impede, inclusive, falas sobre violência sexual. Sob o disfarce de um Programa de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual no âmbito dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e distrital, o que essa MP na verdade faz é colocar uma mordaça nas instituições públicas e privadas de ensino, impedindo que educadores abordem questões relacionadas ao tema. Basta ler com atenção para entender do que se trata.

Uma terceira questão diz respeito aos impedimentos criados pelo Ministério da Saúde para o exercício do direito legal ao aborto decorrente de estupro —isso num país em que mais de quatro meninas com menos de 13 anos de idade são estupradas por hora. Essa questão já está sendo discutida na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 989, mas pode facilmente perder o objeto caso medidas simples sejam tomadas pelo novo governo. Algo bem objetivo a ser feito é a revisão do informe “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, publicado pelo Ministério da Saúde em 2022, bem como a determinação de que os serviços referenciados pelo Ministério da Saúde forneçam informações adequadas a mulheres e meninas.

Por fim, lembrando que temos pouco espaço aqui e estamos falando só das ações emergenciais, é preciso discutir com seriedade a Lei da Alienação Parental (lei 12.318/2010), que tem feito com que muitas mães que denunciam abusos sexuais praticados pelos pais percam a guarda dos filhos para o abusador.

Independentemente de a denúncia ser verdadeira ou não, os processos de retirada da guarda têm sido extremamente traumáticos para as crianças e precisam ser repensados.

Proteger crianças e adolescentes de qualquer forma de violência não é uma opção do governante, é uma imposição da Constituição.

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