O que os líderes mundiais não vão escutar de Bolsonaro na ONU

FONTEUOL, por Juana Kweitel
Prédio da ONU em Manhattan, Nova York — Foto: Saturne/Creative Commons

Como é tradição na ONU (Organização das Nações Unidas), a Assembleia Geral anual do órgão será aberta no próximo dia 21 de setembro, em Nova York, com um discurso do mandatário brasileiro. É muito provável que o presidente Jair Bolsonaro descreva uma versão da realidade que só ele acredita existir. A comunidade internacional vai ouvi-lo tendo em conta a imagem deteriorada de um país que desperta alertas a respeito da situação da democracia, dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente.

Líderes globais devem se lembrar de que estarão diante de um presidente que negou a gravidade da pandemia de Covid-19. Se é certo que a vacinação avançou nos últimos meses, a verdade é que o país poderia estar em patamares bastante mais adiantados de imunização — e salvado muitas vidas — caso os esforços do Planalto tivessem se centrado desde o início em garantir doses de vacinas de todas as empresas dispostas a negociar com o Brasil. Em vez disso, o governo tomou medidas que dificultaram o controle da doença, estocou medicamentos comprovadamente ineficazes e incentivou seu uso.

Não é só na gestão da pandemia que o governo Bolsonaro age com negacionismo: a crise climática está distante das prioridades nacionais. Se de um lado o país manteve sua adesão ao acordo de Paris, de outro não mede esforços para abrir territórios de florestas para o agronegócio, garimpo e grilagem. O resultado disso, considerando a série histórica do Deter/Inpe desde 2015, foi um aumento expressivo das áreas com alerta de desmatamento na Amazônia nos dois últimos anos.

Nem mesmo a demissão do ministro Ricardo Salles contribuiu para uma mudança na política ambiental. Além do enfraquecimento do poder regulatório e fiscalizatório de órgãos como Ibama e Conama, o governo continua patrocinando textos polêmicos no Congresso, que colocam ainda mais em risco as áreas preservadas. Exemplo disso é o projeto que flexibiliza o licenciamento ambiental, o que regulariza terras ocupadas por grileiros – ambos já aprovados pela Câmara – e o que pretende autorizar o garimpo em territórios indígenas, de autoria do próprio Executivo.

Nos dois últimos discursos na Assembleia Geral, Bolsonaro não mediu palavras para atacar os indígenas. Em 2019, usou a tribuna da ONU para constranger uma liderança histórica como o cacique Raoni. No ano seguinte, responsabilizou sem provas os indígenas pelas queimadas. É preciso que a comunidade internacional tenha em conta que não se trata de mera retórica: este grupo é um dos principais alvos deste governo.

A disputa por territórios indígenas inclui a tentativa de retirada de direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos nativos. O marco temporal, em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal) e também no Congresso, quer restringir esse direito unicamente às terras ocupadas no momento da promulgação da Constituição de 1988 – uma tese que ignora o histórico de massacres e deslocamentos forçados impostos a muitos povos indígenas em passados não tão longínquos.

Soma-se a esse contexto uma política de extrema flexibilização do controle de armas e munições, que mostra sua face mais violenta contra a população negra e periférica. De acordo com a última edição do Anuário da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve uma explosão de registros de armas em mãos de civis, chegando a 1,2 milhão — aumento de mais de 100% desde 2017.

Ao mesmo tempo, o país registrou 50 mil mortes violentas intencionais em 2020, das quais a maioria foi causada por armas de fogo (78%), tendo como vítimas homens (91%) negros (76%). Esse aumento exponencial no número de armas em mãos da população também se manifesta no crescimento da violência no campo, colocando o Brasil, de acordo com a organização Global Witness, como o quarto país em que mais defensores ambientais e da terra foram assassinados em 2020.

A população negra também foi alvo preferencial da letalidade policial, respondendo por 78,9% das 6.416 mortes por intervenção das forças de segurança. Bolsonaro nega a existência do racismo e não apresenta nenhuma proposta de política pública para enfrentar essa realidade, contrariando, inclusive, os compromissos assumidos pela ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo.

Enquanto Congresso, Judiciário, imprensa e a sociedade civil resistem às pautas do governo mais agressivas aos direitos humanos, o presidente apela para sua base radical, anunciando que não vai reconhecer o resultado da eleição de 2022, numa tentativa de emular no Brasil a invasão ao Capitólio estimulada pelo ex-presidente Donald Trump nos EUA.

A provável consequência do discurso do dia 21 de setembro será um Bolsonaro cada vez mais isolado na política internacional, sobretudo após perder seu grande aliado, Donald Trump. Caso o Brasil seja convidado a integrar a cúpula internacional sobre democracia, anunciada pelo presidente dos EUA Joe Biden, não cabe dúvida de que Bolsonaro será cobrado pelos retrocessos e ameaças que vem promovendo à democracia brasileira. O recado deverá ser contundente: não há espaço na política internacional para aqueles que não aderirem integralmente aos valores democráticos e aos princípios dos direitos humanos.

*Juana Kweitel é diretora-executiva da ONG Conectas Direitos Humano

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