O que vou ser quando crescer? O seu chão vai dizer

FONTESesc, por Onisajé
Onisajé | Foto: arquivo pessoal

O que vou ser quando crescer? Era uma pergunta insistente em minha cabeça quando criança. Ela vivia a martelar, e eu por mais que me esforçasse não conseguia responder com convicção. Mas criança tem disso, não é? Querer crescer antes da hora, experimentar o mundo adulto, sem perceber que o melhor mesmo é curtir a infância. As pessoas ao meu redor também contribuíam para que essa questão não me saísse da mente. Toda hora me perguntavam o que eu ia querer ser quando crescer. E eu? Nunca conseguia responder. Astrônoma, jornalista, professora, cozinheira, caminhoneira. Jogadora? Manicure como minha mãe. Não! Pedreira como meu pai. Nossa! Minha cabeça vivia rodando. Eu brincava de tudo, escritório, laboratório, show de calouros, televisão, jornal nacional e nada de conseguir achar a pista para a tão enlouquecedora pergunta.

Aos nove anos fui passar férias na casa da minha vó. Lá para mim era um paraíso. Eu nascida numa cidade tão grande como São Paulo, passava muito tempo dentro de casa, pois a urbanidade tem disso, não é? Muito asfalto, muito carro, muitos portões com grades e poucas oportunidades para a criançada brincar na rua. Nas férias de 1989, vim pulando de alegria para a Bahia, mais precisamente para a Fazenda Barra, pequeno vilarejo entre Riacho da Guia, (um distrito de Alagoinhas) e o município de Inhambupe, onde minha vó Maria nasceu, casou-se, criou seus dez filhos e faleceu em 2003.

A casa da minha vó era sinônimo de liberdade, sentimento fundamental que potencializou a criança que fui e a mulher que me tornei. Busca incessante até hoje, diante das lutas e enfrentamentos vividos por mulheres negras como eu. Tinha gosto de fruta fresca tirada do pé, jaca, caju, manga, laranja, banana. Ir para a casa da minha vó significava brincar sem hora de parar, tomar banho de rio, apostar corrida dentro d´água. Era ler histórias… histórias de cordel, e, também histórias de vidas, perceber como aquele chão, que para mim era percebido apenas como divertido, preservava memórias e ancestralidades. Comer jaca mole com farinha agachada no meio do terreiro, eis aí um fragmento da presença da encruzilhada entre os costumes negros e indígenas que tanto orientou e orienta minha família e a de inúmeros brasileiros.

Estar ali era o mesmo que ser feliz, pois era um chão constituído de ancestralidades, pensamentos, e como diria Leda Maria Martins, de afrografias**. No trânsito entre o chão onde nasci e o chão onde me sentia melhor conectada com a existência negra, a oralidade do meu povo, foi o guia para a construção simbólica da minha individualidade e coletividade negra.

Nestas férias eu nem imaginava que iria viver um dos encontros que mudaria minha vida. Numa tarde quente de janeiro, depois de passar o dia brincando no rio com meus primos e amiguinhos, deitei numa esteira embaixo da jaqueira centenária que ficava no meio do quintal, quando de repente ouvi um grito forte. Uma voz grave, com uma força que me deixou assustada. Vi todo mundo correndo em direção a minha vó. Um alvoroço. Quando tudo se aquietou, vi minha vó de braços abertos para mim, todo mundo batia palmas e cantava animadamente. Eu não sabia, mas quem abria os braços para mim já não era minha vó e sim seu Sultão das matas, o caboclo dela. Um pouco ressabiada fui me aproximando devagar, afinal era a minha vó.

Seu Sultão das matas abriu os braços e um lindo sorriso, quando me aproximei me pegou pela cabeça e me tirou do chão, literalmente e, também, metaforicamente, pois me colocou entre as dimensões da materialidade e da imaterialidade. Entre o órun (dimensão imaterial, morada do invisível) e o aiyê (dimensão material, morada do visível) ele fez meus mundos girarem. Sultão das matas olhou bem profundamente em meus olhos, cantou uma cantiga que me deu uma vontade enorme de chorar, pois doeu dentro do meu coração, emocionou minha alma de pessoa negra, tocou no mais profundo da minha subjetividade e sorrindo disse:

– Você não me conhece, mas vai me conhecer bastante. Seu coração está certo, seu chão é este daqui. Aqui está seu verdadeiro lugar. Onde você mora é uma passagem, já já você virá para o chão ao qual pertence.

Foi me colocando no chão bem devagar, me abraçou, ativando minhas identidades, colocou minha cabeça em seu peito e seguiu dizendo:

– O que você vai ser quando crescer? O seu chão vai dizer.

Rodopiou, cantou, dançou, uma dança que era a mais pura representação do que é feito o Brasil, da cultura cabocla, da ancestralidade indígena, encruzilhada com a herança negra do povo Congo-Angola. Meu chão é composto do vermelho Tupinambá, Suiás, Guarani e do preto de Angola, Moçambique, Congo. Se despediu de todos e foi embora.

As palavras de seu Sultão das Matas ecoam em minha cabeça até hoje. Eu fui vivendo, e compreendendo a força dessas memórias e desse chão sagrado. Pude perceber que ele era sim a casa da minha vó, mas também todo e qualquer espaço onde fosse preservada a potência da existência ancestral negra e indígena, por isso poderia ser qualquer quintal em São Paulo, Goiânia, ou Piauí, ou mesmo dentro de cada um de nós.

Como ele mesmo afirmou, o conheci e diversos outros caboclos, orixás, inquices, voduns. As ancestralidades indígenas e negras constituem a mulher que me tornei. Nas encruzas da vida, esse chão vermelho e preto me conduziu a ser uma sacerdotisa-encenadora-preta, a divulgar, preservar e reelaborar os imaginários sobre nós, seja teatralizando, seja auxiliando minha mãe no terreiro, ou ainda escrevendo sobre nós em pesquisas acadêmicas. Meu chão me disse por onde e como andar. Meus ancestrais venceram, pois eu estou aqui. E é este chão, seja nas reminiscências da casa da minha vó, seja no labor da vida artística e religiosa, seja na Bahia, ou em qualquer lugar do mundo, é esse chão, o da ancestralidade que me fez e faz feliz.

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