O racismo brasileiro, sete crianças negras e um passeio no parque de diversões numa tarde de domingo!

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado ao Portal Geledés
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

Jorge Ben, entoa em “Frases” (1967, faixa: 08), uma de suas mais belas canções, a frase “deixa o menino brincar” para simbolizar a sua perspectiva de que as crianças representam aquilo que temos de mais inspirador, nossos sentimentos mais nobres e a esperança de que nosso futuro será sempre melhor! Contra nossa desumanidade, ódios e preconceitos, que se deixe as crianças brincarem para que não nos tornemos o pior de nossos pesadelos!  É canção cheia de sutilezas e encantos, que nos revela em sua sensibilidade, um chamado a razão. Ao poeticamente nos fazer refletir que uma sociedade não zelosa e amorosa para com suas crianças, semeia as causas de sua própria ruína, de sua própria destruição.

O “não cuidado” da sociedade brasileira em relação aos seus infantes é um dos elementos mais cruéis de nossa histórica desigualdade, de nossa endêmica naturalização acerca de nossas diferenças e conflitações sociais. De como desumanizamos aos que consideramos enquanto inferiores. Sendo por isso um elemento discriminatório característico ao racismo manifestado em nossos cotidianos, pois as populações negras são despojadas de sua compreensão humana. Passando a serem vistas e compreendidas enquanto seres coisas ou seres animalescos desde os primeiros momentos da infância. É uma coisificação que solidifica os padrões de sociabilidades em que as pessoas negras sempre acabam associadas aos estereótipos do “bandido”, do “ladrão”, dos “perigosos por natureza”, que merecem por isso a constante vigilância e a brutalidade de nosso sistema.

Uma herança de nossa origem estamental que se fez sedimentar e radicalizar através de séculos da vigência do regime escravocrata, que ainda hoje pauta a lógica de nossas relações e estruturas sociais. Um padrão de comportamento racista que parece não ter fim, repetindo-se num círculo de dores e mortes infinitos…

Realidade essa que marca a alma de suas vítimas, com abalos psicológicos que perpassam gerações, nos tornando uma nação traumatizada pelo racismo, que não consegue lidar com seus temores, em eterna negação e covardia ante seus próprios “pecados civilizatórios”. Um retrato daquilo que temos de pior, que se faz manifestar quando menos esperamos, como na ida de sete crianças a comemorar o aniversário de um deles num parque de diversões numa tarde de domingo! 

De antemão o que pode haver de ruim numa história dessas? De crianças festejando aniversário num parque de diversões? Isso é tão comum, isso é tão normal, deixar crianças serem crianças, nada mais poético e belo do que isso. Mas, quando tal fato se dá com sete crianças negras… Infelizmente não existe o encanto da beleza e muito menos o poder da poesia diante das garras de nosso racismo!

Zona Leste de São Paulo, mas poderia ser qualquer cidade de nosso país, em que um pequeno grupo de crianças decide pedir ao seu tutor para comemorar os festejos de um deles, nos brinquedos do Playcenter Family, localizado no Shopping Aricanduva. Todas se deslocando de um trabalho social vinculado a uma igreja metodista, destinado a atender a crianças carentes da região, para irem ao local de sua própria escolha em busca de momentos de lazer e felicidade. Nada que as torne “seres perigosos” ou “problemáticos por natureza”, ainda mais em um espaço voltado para lúdico e a aventura! 

Mas elas são sete crianças negras, pobres e periféricas, nessa distopia aterrorizante, contemporânea, chamada Brasil! Que foram abordadas desde sua chegada ao parque, já na fila da compra de ingressos, tratadas rispidamente pelos seguranças, como suspeitas de nascença, com a alegação que não poderiam entrar sozinhas ao local por serem “menor de idade”, embora inúmeras crianças brancas entrassem ao recinto sem acompanhamento de nenhum adulto, sem absolutamente ninguém ao seu lado, não sendo barradas e muito menos constrangidas por isso. Ressaltando que elas estavam pagando para adentrar ao local, não estavam invadindo, pulando muros ou furando cerca – como sempre aparece alguém para querer justificar o injustificável, então que fique claro que elas estavam pagando para vivenciar aquela experiência de ludicidade como todas as demais pessoas que ali circulavam – e foram sem justificativa interpeladas pelo simples fato de ali estarem! Uma situação que só foi solucionada, mesmo assim com muito custo, quando o responsável pelo projeto se identificou, e colocou que estava ali como responsável pelas crianças.

Situação de desconforto, constrangimento e humilhação, realizada ante aos olhos de todos que ali estavam, expondo-as a um ridículo tamanho pelo fato de serem indesejados ao local, de não serem compreendidos como pertencentes a aquele espaço de convivência. Por estarem querendo circular e divertir-se em um lugar que não era para elas!

Absurdo que não teve fim, em nenhum momento em que ali estiveram, sendo constantemente vigiadas, seguidas, sendo literalmente tratadas como animais caçados, perigosos e portadores de uma periculosidade inata que a todo custo deve ser evitada, ou podada antes de causar um mal maior as pessoas que estão próximas a ela. 

A crueldade dessa violência, dessa canalhice, foi num crescendo que atingiu seu auge quando foram brincar no último brinquedo do dia e foram impedidos de acessar o mesmo. Com a alegação de que “estavam sem um responsável”, sem um adulto com eles. A mesma argumentação que havia sido apresentada para justificar a não permissão de seu acesso ao parque, o que demonstra que estavam sendo acompanhados – por horas e horas – pela equipe de vigilância do Playcenter, desde mesmo antes de darem o primeiro passo dentro do local.

Devido a reação revoltosa do responsável pelo grupo, seguranças foram chamados ao brinquedo e alegaram terem recebido denúncias que aquelas crianças estavam “pedindo dinheiro” e “roubando carteiras”. Uma ação de checagem da veracidade das “denúncias” através do sistema de câmeras daquele espaço seria uma medida mais profissional, digna e respeitosa, do que a proibição sumária do direito delas divertirem-se. E impediria toda uma situação de embaraços que isso implica a quem acaba passando por essa humilhação. Mas esperar esse tipo de tratativa, para quem de antemão já eram culpados só pelo fato de ali estarem, chega a ser ilusão! Que país é esse em que é pedir demais, ou ser ingênuo, esperar um pouco de respeito e humanidade, um pouco de lógica e ponderação, de bom senso, numa situação como essa? É um país em que não podemos esquecer de que as crianças em questão eram negras e isso justifica para alguns, como demonstra esse caso, todos os absurdos normalizados que se seguiram. As crianças não eram para ali estar, não eram para ali se divertir, não eram para ali conviver, não eram para ali ficar, é isso! Pura e simplesmente é isso que aconteceu! Racismo em sua mais pura e cruel manifestação, em sua essência de hipocrisia social brasileira. Nossa canalhice contemporânea enquanto sociedade que perdeu a vergonha de ser racista!

Diante do desespero dos meninos, das dores que lhes açoitavam a alma naquele momento, o responsável por eles questionou toda aquela situação e como resposta recebeu as típicas falas de sempre, de que “não havia racismo algum”, “de que tenho amigos/parentes negros”, e por último a de que ele “não tinha lugar de fala naquela situação por ser branco”(GARCIA, 2022). Ou seja, além do conjunto de atos racistas em si, as denúncias em relação a tudo que estava ocorrendo não seria levado em consideração por ter sido realizada por uma pessoa branca! 

Mas as “denúncias” – até agora não veiculadas ou demonstradas – de que as crianças estavam prejudicando a ordem do local e cometendo crimes foram acatadas como verdades absolutas! Por que essa diferença de percepção? Por que essa postura entre aceitar como verdade inconteste uma e desqualificar, sem titubear, de maneira até estapafúrdia, aquilo que não lhe interessa? Até uma associação prévia dos jovens com um outro grupo de crianças que teriam gerado problemas anteriormente no estabelecimento foi demonstrado para querer balizar os processos de discriminações racistas que se seguiram. Nada que poderia ser relativizado em prol das crianças foi realizado, nem mesmo ponderado, mas em contrário, tudo aquilo que poderia ser utilizado/justificado para atestar sua culpabilidade e as punições por isso, foi executado com máxima presteza e zelo! Era (é) realmente um parque de diversões ou na verdade um tribunal inquisidor, em que os naturalmente suspeitos já estão condenados de antemão, com execução sumária e imediata?  

E o mais cruel disso tudo é que foi um caso gravíssimo, de uma violência e crueldade simbólica brutal, que está passando praticamente incólume. Era para estar havendo ações e mais ações dos movimentos negros, de entidades de direitos humanos, desde piquetes na frente do estabelecimento, passando por boicotes a empresa, até atos e manifestos de repúdio. Mas nem abaixo-assinado virtual está em andamento! 

Um silêncio que chega a tornar essa situação mais constrangedora ainda do que já é! Se enquanto movimentos políticos e sociais a negritude brasileira não se mobiliza nem para defender as suas crianças, vamos nos mobilizar para quê? Se diante de um caso concreto como esse ficamos a inércia, o que nos resta? Dá a impressão… Parece que estamos a escolher nossas pautas e batalhas de acordo com o que dá mais visibilidade na grande mídia, no que ela escolhe e pauta como aquilo que deva ser tornado público. Quando o correto era (são) nossas lutas e reivindicações forçarem o “sistema” a responder ante as nossas demandas e práxis políticas. Esquecer disso ou abdicar disso é bailar prazerosamente com a própria morte! Pois esperar a salvação e esperança advir exatamente daquilo que nos mata, seria a prostração ante esse caos e tempos sombrios que nos circundam!

Sete crianças negras, marginalizadas e discriminadas por sua etnia-raça e condição social. Foram vítimas de racismo, tiveram sua psique, sua condição humana destroçadas em um simples passeio de comemoração de aniversário em um parque de diversões. Voltaram aos prantos para seus lares, terrivelmente marcadas por essas experiências para o resto de suas vidas! E vamos deixar por isso mesmo? Vamos deixar que fique tudo como está? Vamos deixar que lhes roubem o seu direito a infância?  Vamos deixar que nossas crianças não sejam mais crianças?

Ou será que somos todos realmente antirracistas e que tais situações sejam tão esporádicas e irrelevantes que não devam ser levadas em consideração e muito menos confrontadas? Vivemos então de fato a era do “se deixarmos de falar sobre racismo, ele deixará de existir”? 

Será essa a fala que teremos que dizer a estes jovens, em especial, e a tantos outros que passam por situações tão terríveis e traumáticas como essa? Deveremos então dizer que denunciar, combater buscando a destruição do racismo nada mais vale? De que eles devem se acostumar a isso que aí está? Normatizando a desumanização que tal realidade promove? Que ninguém – nem nós – está aqui por eles e para eles? 

Eu a isso me nego, e nesse sentido, acredito ser fundamental que não esqueçamos o provérbio africano de que: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Que sejamos, de fato, essa aldeia! E rogo, encarecidamente, aos Orixás que ainda saibamos, e tenhamos tempo em dar acalento e proteção aos nossos pequenos! 

Sementes de nosso futuro e de nossa esperança, do germinar da efetiva Abolição, da Primavera Negra que, finalmente, haverá de florescer!

Referências audiovisuais bibliográficas:

BEN, Jorge. O Bidú: Silêncio no Brooklin. 1967. Gravadora: Copacabana, Rio de Janeiro. In: https://www.youtube.com/watch?v=yHTBRf3XO2g, acessado em 05/03/2022

GARCIA, Gabryella. Crianças negras são barradas em brinquedo de shopping, diz responsável. Cotidiano – UOL. In: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/03/05/criancas-negras-vitimas-de-racismo-em-shopping.htm, acessado em 06/03/2022


Christian Ribeiro mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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