O racismo limita o Dia das Crianças

FONTEPor Ricardo Corrêa, enviado ao Portal Geledés
Foto: Adobe

As expectativas de lucro do comércio aumentam com a aproximação do Dia das Crianças, celebrado em 12 de outubro. O mercado é inundado de produtos destinados ao público infantil. Espaços culturais e emissoras de televisão também entram no clima, oferecem filmes, peças de teatro, shows entre outros entretenimentos. A nostalgia toma conta dos adultos, o que não é o meu caso. Eu senti na pele as dores de ser uma criança negra e pobre. E partindo desse ponto, tenho críticas a respeito do Dia das Crianças, pois lamento a ausência de discussões sobre o impacto do racismo na infância. Não podemos ignorar que a criança é um ser social, nesse sentido, a sua sobrevivência é experimentada de diferentes maneiras, impactada conforme a classe e a raça. 

Em primeiro lugar, não acho aceitável o estímulo ao consumo, já que a maioria da população brasileira é faminta. A exposição das crianças aos produtos infantis, nas vitrines de comércios e propagandas de televisão, até impacta a saúde mental. Os familiares das crianças podem não possuir condições econômicas para comprar o brinquedo desejado, afinal, o racismo impede que a maioria dos negros tenha o básico para sobrevivência. Como presentear as suas crianças? Ao circularmos nos grandes centros urbanos vemos negros morando nas praças, viadutos, calçadas. Famílias negras compartilhando o minúsculo espaço em barracas, abrigos construídos de papelão e madeira. Comendo sobras de comidas ao ar livre, revirando lixos atrás de alimentos, ingerindo água na tentativa de atenuar a fome. Nos transportes públicos, e semáforos, crianças e adultos negros vendendo balas, garrafas de água, ou pedindo esmolas, acompanhado com recortes de papel escritos “Me ajude. Falta comida em casa. Deus te abençoe”. 

Em segundo lugar, inúmeras pesquisas apontam o encarceramento e assassinato em massa de homens e mulheres negros, levando-me a pensar sobre a quantidade de crianças negras o Estado tem deixado órfãs ao longo dos anos. E ainda podemos comentar sobre o papel nocivo da escola na infância das crianças negras, ambiente em que promove a corrosão da autoestima das crianças. O racismo está presente na negligência do conteúdo da história africana e afro-brasileira, apesar da lei 10.639/03, no comportamento dos professores, funcionários e alunos brancos. O preconceito e discriminação raciais são tão comuns que as crianças saem da escola odiando a própria raça e com vergonha da família. Nas palavras da antropóloga Lélia Gonzalez “Se refletirmos um mínimo sobre a questão, não teremos dificuldade em perceber o que o sistema de ensino destila em termos de racismo: livros didáticos, atitudes dos professores em sala de aula e nos momentos de recreação apontam para um processo de lavagem cerebral de tal ordem que a criança que continua seus estudos e que por acaso chega ao ensino superior já não se reconhece mais como negra.”

Lembro que na minha infância, em diversos momentos, sentia-me constrangido pelas crianças brancas expondo na escola os brinquedos que ganharam dos pais; e como se não bastasse, as pessoas me perguntavam “o que você ganhou de presente?”. Às vezes eu mentia ao responder tamanha a vergonha que sentia. Portanto, o Dia das Crianças não alcança todas as crianças. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Casa Civil, Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Brasília, DF.

GONZALEZ, L. Por um feminismo Afro-latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Org. Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

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