O racismo entre os muros da escola
“Lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele.”
Paulo Freire
por Ricardo Alexandre Corrêa no Carta Campinas
Uma criança branca da sexta série disse ao colega na sala de aula “só podia ser coisa de preto”; estava nervosa porque recebera a lapiseira toda quebrada que havia emprestado a ele. Outro colega ao presenciar a ofensa avisou à professora que imediatamente buscou esclarecer os fatos e disse “a gente tem que ver quando é brincadeira, ou ofensa, porque a cor dele é realmente preta”.
Esse caso aconteceu em uma escola estadual da Zona Leste de SP; o racismo expresso no discurso da criança e a abordagem utilizada pela professora é um problema que está presente em inúmeras instituições escolares.
Outro exemplo esta no relato da Jurema Werneck – diretora executiva da Anistia Internacional – à revista Marie Claire “(…) minha lembrança mais antiga é a de ter 6 anos e, num dos ensaios para a festa junina, a professora formar os casaizinhos e me colocar para dançar com o Zé Carlos, um colega de turma branco, que se recusou a encostar em mim (…) Ele não queria pegar na minha mão, então segurou um prego entre os dedos para me espetar.”1
Essas situações demonstram o racismo operando nos discursos e − até − na violência física entre os muros da escola, caso perguntemos para crianças, jovens e adultos negros sobre o racismo que vivenciaram na escola haverá uma abundância de relatos, desde a falta de empatia dos professores, exclusão nos momentos de entretenimento ou atividades escolares em grupos, agressões físicas e piadas racistas, acusações de furtos etc; situações que atravessam gerações e marginalizam as crianças negras, culminando numa educação dolorosa e desestimulante.
Como disse a doutora em Antropologia Social, Nilma Lino Gomes (2003) “A escola, enquanto instituição social responsável pela organização, transmissão e socialização do conhecimento e da cultura, revela-se como um dos espaços em que as representações negativas sobre o negro são difundidas.”
Os conteúdos de ensino e materiais didáticos legitimam o racismo no plano subjetivo, contribuindo para o desestímulo das crianças. Nestes materiais, a proporção da representação das figuras e histórias acerca da cultura afro-brasileira é ínfima, e, priorizam a construção de valores eurocêntricos “o ideal a ser alcançado” e, por outro, reforçam os estereótipos que afetam negativamente a população negra.
É mais do que necessário a criação de uma atmosfera que evidencie a cultura afro-brasileira, potencializando as discussões e as atividades pedagógicas. Essas crianças precisam de representações que dialoguem com o próprio corpo e sua essência.
Um marco com vistas para a mudança do paradigma educacional estava na lei 10.639/2003 que incluiu no currículo escolar a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, entretanto, existem diversos obstáculos resultantes do profundo racismo enraizado no país que impedem a sua aplicação. Já se passaram 15 anos, desde a aprovação da lei, e poucas coisas foram mudadas.
Ainda esperaremos mais quantos anos para que a mesma seja cumprida em todas as escolas? É urgente que as políticas públicas priorizem a formação de profissionais especializados para atuarem no ensino da cultura afro-brasileira. Cabe ressaltar que a cultura africana é muito densa e não deve ficar restrita somente a uma disciplina, pois as contribuições dos povos africanos e sua diáspora ocorreram em todas as áreas do conhecimento.
Além disso, o governo deve promover projetos de conscientização para todos educadores e atuantes na área educacional sobre a importância do combate ao racismo. Como a professora daquela escola estadual, existem muitos profissionais que não estão preparados para enfrentar o preconceito e discriminação racial no exercício do trabalho. Ainda naquele contexto, por exemplo, em face alguma deveria ser reforçado o ditado preconceituoso, mas desconstruí-lo na sua expressão.
A escola, como lócus da construção do conhecimento e cidadania, não pode continuar ignorando o que vem acontecendo dentro do seu espaço. Sabe-se que estamos numa sociedade cujo discurso dominante coloca nas mãos dos indivíduos a responsabilidade do próprio destino, aconselhando a todos de que somente a educação é o instrumento de emancipação social e econômica, mas ignora todo o racismo secular. Ainda assim, essa mesma sociedade tem negligenciado uma escola acolhedora para que as crianças negras possam desenvolver suas potencialidades na construção de saberes. Portanto é imperioso mudarmos o discurso, mudarmos a escola.
- Jurema Werneck: a voz da resistência Disponível: <https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2018/04/jurema-werneck-voz-da-resistencia.html>. Acesso: 28. abr 2018.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 31ª
ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005
GOMES, Nilma Lino. Cultura negra e educação. In: Revista Brasileira de Educação. ANPED, n. 23, Maio/Jun/Jul/Ago 2003. p. 77.