Minha irmã, tu não conhecerias Luanda se não tivesses passado pela corrupção institucional, te faltaria um pedaço importante de percepção desta terra de mártires e de gente desterritorializada. Da mesma forma que ao chegar ao aeroporto reconheceste nas pessoas a casa de onde partiste, ao voltares para tua casa, tiveste contato com os ardis que nos tornaram o povo que somos hoje.
Sim, não te pediram comprovante de vacina da Covid para entrar no país, mas te pedirão para sair, depois de teres supostamente espalhado o vírus de que podias ser portadora. E se não tiveres, não te preocupes, já haverá um esquema montado e tudo dará certo. Por algum valor, não tão pequeno e em euros, tu conseguirás embarcar de volta. Para despachar a peça de madeira maciça que compraste a um artista, reserva de duas a três centenas de euros, dependerá de tua capacidade de negociação. Tuas ancestres foram negociantes, por que ainda não aprendeste a negociar?
Tu, com tua cara de parva, serás abordada por alguma funcionária da segurança que terá a cara de tuas tias bonachonas e te perguntará ao pé do ouvido se tens algum dinheiro a declarar. Tua face surpreendida diante da tentativa explícita de extorsão levará a mulher a ser específica contigo: dólar? Euro? Kwanzas? Só tenho reais, tu pensarás em responder, mas não o farás com medo de sofrer qualquer tipo de retaliação que te obrigue a pagar propina sob pena de perderes o voo.
A corrupção que teus olhos alcançam é pequena, é singela; temos a grande, a mastodôntica. Temos a filha do ex-presidente do país, por exemplo, que se tornou a mulher mais rica de todo o continente, que recorria aos bancos para empréstimos exorbitantes sob a justificativa de que para construir a Angola do futuro era preciso investir e, como ela era quem era, davam-lhe o que pedia, por mais estratosférico que fosse o montante.
A moça no aeroporto não tinha um fuzil como o guarda que elogiou teus óculos escuros, lembras? Mas tivestes o medo correto e a presença de espírito para evitar que ela lançasse outras armas de coerção sobre ti.
E trate de desmanchar essa cara de choro, desfaça suas ilusões. Não se trata de a mulher em questão ser boa ou má pessoa, ela é apenas uma sobrevivente que quer levar comida aos filhos, ou quer comprar uma televisão maior para assistir às novelas brasileiras, ou ainda, quer conseguir dinheiro para cobrir o preço extorsivo dos táxis que a conduzirão ao trabalho nos dias de chuva, porque, se faltar, perde o emprego, estás a ver? São muitas questões para as mulheres solucionarem, tem ainda os sobrinhos mais velhos que ela ama como filhos, são filhos, e não têm trabalho e sonham se mudar para o Brasil e fazer a vida por lá e consertar a vida dos de cá.
Mal sabem que podem morrer embaixo de porradas como Moïse, o jovem congolês. Esse tem sido nosso destino de alvos da recolonização. Não pense que só a China tem um comportamento extrativista conosco, porque te assusta saber que eles tenham dois trabalhadores para cada cama, dormindo um no turno em que o outro trabalha. O Brasil de Lula abriu as portas dos países africanos para as igrejas que querem nos roubar tudo, nosso espírito e nosso dinheiro, e nos mandou as empresas brasileiras que vendem a ideia de progresso e pleno emprego, mas o que fazem é se aproveitar da mão de obra local. Sobre o Brasil de Bolsonaro e sua relação conosco, nem faço comentários.
Os chineses agora têm arrancado nossos baobás inteiros. Não sei se a tecnologia deles os fará sobreviver transplantados, mas, se sobreviverem, serão para sempre tristes, porque nós, a seiva que nutre os imbondeiros, continuaremos aqui ou espalhados pela diáspora, protegidos pela beleza inacreditável dessa lua, no movimento espiralar de contar a história pelo começo, meio e começo de novo.
Cidinha da Silva (MG) publicou entre outros livros, os premiados: “Um Exu em Nova York” (Biblioteca Nacional, 2019) e “O mar de Manu” (APCA 2021, melhor livro infantil). Tem dois livros no acervo do PNLD Literário (FNDE), “Os nove pentes d’África” (2020) e “Oh, margem! Reinventa os rios!” (2021). Suas obras integram ainda outras políticas públicas de formação de acervo nas escolas do Brasil. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.
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