A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso, em 2010, representou um salto importante para o desenvolvimento de políticas públicas orientadas à eliminação da desigualdade racial no Brasil. Seu conteúdo afinal materializa um processo amplo e duradouro de discussões, bem acaloradas, abarcando diferentes movimentos negros, e é também uma síntese das reivindicações históricas da população negra em negociação com perfil conservador dos legisladores naquela altura.
O seu efeito principal foi reconhecer a problemática racial com relação aos direitos fundamentais, tais como saúde, moradia, emprego e educação, citando as dificuldades particulares da população negra para acessá-los, prevendo também um sistema de financiamento para execução de projetos voltados à diminuição do abismo existente.
Como não é novidade, porém, o Estatuto tem sido frequentemente negligenciado. O Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, atualmente vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves, praticamente não recebe aporte de recursos, e faltam equipes técnicas trabalhando na articulação de novos projetos. Além disso, faltam delimitações mais específicas sobre quais indicadores o poder público deveria aplicar em cada área para acompanhar os resultados e metas que as políticas públicas perseguirão em um futuro próximo.
Estes dois limites têm sido tratados, após a aprovação do Estatuto no âmbito nacional, por legislações em estados e municípios que buscam avançar com relação a obrigações mais específicas e criando novas fontes de financiamento de ações. São os casos da cidade de Niterói e do estado do Pará, que acaba de aprovar um Estatuto deste tipo.
E foi desta mesma forma que apresentamos em fevereiro deste ano um Estatuto Municipal da Igualdade Racial para o Rio de Janeiro. É a segunda vez que um projeto sob este nome tramita na Câmara do Rio (o primeiro foi proposto em 2015 pelos movimentos negros em parceria com Marcelo Arar), e desta vez temos expectativa que a pressão da sociedade civil seja suficiente para que não seja engavetado e esquecido.
A questão principal é que estamos todos já conscientes da dinâmica na qual muitos representantes políticos, geralmente em época de eleição, fazem declarações e gestos simpáticos ao enfrentamento da desigualdade racial de forma alegórica, mas na hora de prever e garantir orçamento específico para transformar os discursos em programas e ações efetivas, desaparecem como fumaça. Em outras palavras, se chapéu de sambista na cabeça sempre resultasse em política pública de combate ao racismo, a cidade do Rio já teria alcançado pelo menos um patamar menos absurdo de segregação.
Nesta quadra da história há muito menos espaço para discursos demagógicos, vazios na prática e descompromissados com a efetividade. Portanto, o que nós estamos demandando através de um Estatuto é que os compromissos com a população negra e a sua luta histórica por acesso aos direitos consagrados na Constituição se tornem, finalmente, garantia de dignidade para todas as pessoas desde o começo da vida.
Thais FerreiraThais Ferreira, é mulher preta, mãe e cria do subúrbio. Especialista em políticas públicas para maternidades e infâncias, é filiada ao Movimento Negro Unificado (MNU) e atualmente é vereadora pelo PSOL e presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente na Câmara Municipal do Rio de Janeiro.