O samba que virou cesta básica

FONTEReportagem: Amanda Porto - Edição: Kátia Mello

A reportagem abaixo faz parte da série Geledés- Retratos da Pandemia, que traz histórias de como os moradores das periferias estão enfrentando a batalha contra a covid-19. São relatos que capturam a humanização do cuidado, a solidariedade e a organização nas comunidades em prol dos mais afetados pela doença infecciosa.

Antes da chegada da pandemia, o Pagode Na Disciplina, no Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo, reunia, como numa grande família, centenas de pessoas todo último domingo de cada mês para ouvir, cantar e dançar samba, numa mistura de festa com ingredientes de ativismo e música. Em algumas tardes dominicais, 900 pessoas chegaram a se apertar ao som da batucada. Nestes últimos meses, os tambores foram silenciados por motivos óbvios em relação ao risco de aglomerações para a covid-19, mas o lugar não deixou de ter a sua relevância ao ser transformado em um depósito de cestas básicas. Da sede do samba saem recursos para a sobrevivência de centenas de moradores da região que não têm as condições financeiras para comprar itens de alimentação e higiene. À frente da entrega das cestas está Luana Vieira, e sua irmã mais nova, Letícia dos Santos.

Assim que começou a pandemia, dentro de sua própria casa, Luana começou a produzir algumas marmitas para as crianças moradoras da região. “Essas crianças estão na rua, não vão mais para a escola, onde se alimentam? O que será que estão comento?”, se perguntava. Com afeto e seus próprios recursos, todos os dias, durante um mês, no horário do almoço, Luana cozinhou em grandes panelas para meninos e meninas de sua comunidade. A cada dia, via que o número delas aumentava em seu quintal. O portão aberto acolhia a garotada que podia ter mais uma refeição garantida ali mesmo. Até que o inevitável aconteceu, o número aumentou desenfreadamente, e irmãos, pais e mães, famílias inteiras passaram a procurar por sua marmita. “Comecei a ficar assustada. Com os comércios fechados e os centros de reciclagem também, percebi que a minha comunidade estava com fome”, conclui.

Luana Viera, gestora executiva do projeto sociocultural Comunidade Pagode Na Disciplina

O projeto das marmitas foi encabeçado pela Uneafro Brasil, através da ‘Vakinha’, estratégia de arrecadação de fundos divulgada pelas redes sociais em prol do apoio permanente a famílias negras e periféricas durante a pandemia da covid -19. Logo as cestas básicas de alimentação e higiene, que também foram arrecadadas pela Vakinha, chegaram para somar no projeto. A princípio, se pensava que quando a covid-19 chegasse à quebrada seria um caos para toda comunidade. Mas na sede do samba do Jardim Miriam o que se viu foi o contrário. Todo cuidado tem sido feito no momento da distribuição das cestas, uma vez que já de início, formaram-se filas numerosas nos arredores da sede do Pagode Na Disciplina. Cerca de 600 famílias foram cadastradas manualmente por Luana e sua irmã em folhas sulfites com rasuras, numa demonstração de que a cada visita os nomes são atualizados. Por vezes, famílias inteiras foram computadas nos índices de desemprego.

Como diz Mano Brown na música Negro Drama, “Na época dos barracos de pau lá na Pedreira, onde cês tá, o que cês fizeram por mim?” e a resposta é nada porque o Estado segue negligente, e então com o cuidado redobrado e apesar de todo medo, a necessidade da comunidade sempre acaba falando mais alto. Faça sol ou chuva, de segunda a segunda, às 13h, lá está Luana fazendo as entregas das refeições para a população em situação de rua, com alto astral, atendendo pessoalmente cada uma das pessoas que ela trata como “tios” e “tias”, numa relação de quem sabe bem o que é viver na periferia. Cerca de 20 mil marmitas foram entregues em 212 dias ininterruptos de muito trabalho.

Nem uma pneumonia forte em 2019 que afetou sua saúde nem o medo de contrair o novo coronavírus impediu Luana de seguir com seu trabalho de distribuição das cestas. Tomando todos os cuidados e munida de luvas, máscara, álcool em gel e com a vontade de ver seus iguais passarem minimamente o período de pandemia sem fome, Luana prossegue. “Fiquei com muito medo, mas pensei: vou tentar de todas as formas possíveis fazer as coisas com todo cuidado e seriedade. Ver os meus iguais me alivia o medo”.

No distrito da Cidade Ademar, onde se encontra o Jardim Miriam, há um complexo de 24 favelas, composto por casas de alvenaria, barracos de madeirite e restos de entulhos de desapropriações de casas. Quando o cadastro aponta a necessidade, as entregas das cestas básicas acontecem de porta em porta.  E Luana e sua irmã saem por entre becos, vielas e escadões para abastecer famílias com idosos, mães com filhos pequenos, pessoas com mobilidade reduzida, doentes em isolamento ou com suspeita de covid-19.  Na busca por organização e menos aglomeração, as entregas das cestas são feitas por ordem alfabética: a cada dia, cinco letras do alfabeto da lista de famílias cadastradas são beneficiadas. Por estes cadastros, ela controla diariamente a quantidade de cestas doadas e a quem são destinadas.

Foto Luana – Distribuição das cestas básicas no Pagode da Disciplina

Com o passar dos meses, Luana passou a receber novas demandas além da alimentação, tornando evidentes os impactos socioeconômicos e raciais da pandemia nas comunidades periféricas. Passou a observar, por exemplo, que mesmo com a retirada da cesta algumas pessoas voltavam no dia seguinte para pegar sua marmita, com a justificativa de que não tinham gás ou água para cozinhar. Ela se lembra de um garoto de 17 anos atendido pelo projeto, egresso do sistema penal, frequentador do samba, que vinha à procura da marmita todos os dias para ele e a mãe, que se encontra acamada. “Ele foi um dos que me disse que iria cozinhar a lenha, porque não tinha gás em casa. Acabou de sair da Fundação Casa, e provavelmente, não vai conseguir trabalhar tão cedo, seja pelo preconceito do mercado de trabalho por ser egresso ou pela crise econômica da pandemia. Para um garoto da idade dele, às vezes pedir pode ser humilhante, mas o que eu puder fazer para que ele não volte à Fundação Casa, vou fazer”, completa.

Ainda como parte do projeto Pagode Na Disciplina, Luana conseguiu doações de fraldas e leite durante três meses, o suficiente para abastecer 200 mães na região do Jardim Miriam. Ao Geledés, ela contou uma história que marcou sua trajetória na corrida contra os danos da pandemia em sua comunidade. “Alguém passou o meu contato para uma senhora, mãe solo, diarista e que não estava trabalhando devido à pandemia. Quando ela me ligou em uma tarde, me disse que até aquele horário seus filhos ainda não tinham nem tomado café. Aquilo mexeu demais comigo, é uma família que tem mais de sete crianças na residência, e uma cesta básica não seria suficiente para suprir uma casa que abriga 11 pessoas. Fomos, então, até ela levar cestas básicas e de higiene, fizemos o levantamento das necessidades e arrecadamos roupa, leite, fralda, bolachas, doces e até mistura”, lembra. “Como dizia Maria Carolina de Jesus, com fome não se brinca”, resume.

Antes da chegada da pandemia, o Pagode Na Disciplina, no Jardim Miriam, reunia centenas de pessoas todo último domingo de cada mês

O projeto social acontece com apoio da própria população que contribui com agasalhos, cobertores ou com um quilo de alimento não perecível, sendo que tudo que é arrecadado retorna para algumas famílias em situação e vulnerabilidade mapeadas por Luana. Roupas e cobertas acabam sendo direcionadas às pessoas em situação de rua, que se tornou uma demanda muito grande da região. Segundo o Censo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgado no mês de junho, a população em situação de rua no país cresceu 140% a partir de 2012, chegando a quase 222 mil brasileiros até março deste ano, índice que deverá aumentar com a crise econômica devido à pandemia.

Hoje, Luana é gestora executiva do projeto sociocultural Comunidade Pagode Na Disciplina Jardim Miriam, que conta com roda de samba, cursinho pré-vestibular. De alguma forma, a militância sempre esteve presente em sua vida. Ela começou com o Movimento Negro Unificado no ABC paulista, sempre estando envolvida com o movimento Hip Hop de Diadema que tornava a vontade de fazer o Jardim Miriam um local potente culturalmente. Em 2014, em uma de suas andanças antirracistas, durante a II Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, ela conheceu a Uneafro Brasil. “Não tinha nenhum projeto assim na minha época. Se não fosse isso, eu não tinha como prestar uma faculdade pública, sendo um problema a menos em questão de grana”, conta.

Luana Viera, gestora executiva do projeto sociocultural Comunidade Pagode Na Disciplina

Em 2015, veio o convite para desenvolver o projeto Pagode Na Disciplina, um grupo de samba, majoritariamente masculino atuante na região do Jardim Miriam. Luana aceitou a proposta do cursinho para os integrantes do grupo, era o momento de começar um projeto que pensava no samba como um dispositivo para impulsionar a comunidade a estudar, desmistificando a figura do sambista que é tido como marginal e que não gosta de estudar. A comunidade estaria envolvida e o intuito era de levar os frequentadores do samba às aulas do cursinho.

Assim nasceu o Núcleo Pagode na Disciplina, numa união de samba e curso popular, inaugurado sob a coordenação de Luana, com uma boa roda de samba e feijoada na imensa Rua Oldegard Olsen Supucaia.

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