O trânsito para a liberdade e a precarização do trabalho livre no final do século XIX

FONTEPor Flaviane Ribeiro Nascimento, enviado para o Portal Geledés

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Apesar da resistência de mulheres e homens escravizados e de movimentos antiescravistas nacionais e internacionais, aqui ela sobreviveu à conjuntura global antiescravista surgida com a crise dos sistemas coloniais. A abolição vai acontecer apenas no final do século XIX, respaldada por legisladores, depois de um conjunto de normas jurídicas que pretendiam uma “transição” para o trabalho livre mediante a indenização das elites escravistas, do controle e da disciplina dessas trabalhadoras e trabalhadores que passariam a ter liberdade para negociar a força de trabalho. A resistência à abolição da escravidão foi justificada pela dependência do trabalho cativo e pela racialização do comportamento em liberdade dessas mulheres e desses homens, que seria marcada por insubordinação, desordens e perversão moral, como argumenta a historiadora Wlamyra Albuquerque. Aliás, esses argumentos foram usados em todas as sociedades que passaram por processos emancipacionistas, desde os Estados Unidos no final do século XVIII, às colônias e países que acabaram com a escravidão no século XIX.

Lei do Ventre Livre. Fonte: Biblioteca Digital do Senado

Esse conjunto de leis antiescravistas (Ventre Livre e Sexagenários, além de uma série de regulamentos) deu origem a procedimentos de libertação legal, entre os quais destaco o contrato de trabalho, dispositivo desse programa de desmonte gradual do escravismo que registra a expectativa de controle e disciplina das trabalhadoras e trabalhadores egressos da escravidão. Acompanhemos, inicialmente, o caso de Febrônia, que no dia 9 de fevereiro de 1881, em Feira de Santana, no agreste da Bahia, firmou contrato de prestação de serviços com Olegário Ribeiro Lima, cujo termo se encontra arquivado no Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana (CEDOC-UEFS). O contrato referente a 6 anos e 9 meses de prestação de serviços, relativos à quantia de quatrocentos réis que ela recebeu dele, dizia respeito ao valor “por quanto foi liberta por Bernardo José de Lima Sudré, conforme o contrato que com este fizera de prestar-lhe os serviços durante a sua vida”, “sujeitando-se em qualquer falta às penas estipuladas pela Lei número dois mil e quarenta de vinte e oito de setembro de 1871”. 

Mercado na Feira de Santana. Século XIX. Fonte: Coleção Thereza Christina Maria, Biblioteca Nacional.

O acerto entre Febrônia, Olegário e Bernardo narrado pelo tabelião é um típico caso de alforria condicional, prevista pelo programa emancipacionista: libertação condicionada à indenização senhorial por meio de pagamento em dinheiro ou serviços, ou uma combinação de ambos, como foi o caso. Portanto, não foi por acaso a referência à Lei n. 2.040, que ficou conhecida por Ventre Livre. Essa lei foi a primeira a legislar sobre a organização do trabalho dentro de uma política de emancipação gradual, pois, além da libertação do ventre, da legalização do pecúlio, do fundo de emancipação e da possibilidade de se valer de empréstimos a terceiros para a compra da alforria, era considerada “peça central de uma estratégia legal que atrelava diretamente a libertação dos escravos à reordenação do trabalho e a transição para um mercado de trabalho livre” – nas palavras do historiador Henrique Espada Lima.

Olegário Ribeiro Lima. Fonte: Coleção de Luiz Cleber Moraes Freire. Acervo Particular.

A Lei do Ventre Livre passou a inscrever a alforria condicional como um procedimento legal de libertação e uma pedagogia para o mundo do trabalho livre. Por meio do artigo 4°, parágrafos 3º, foi permitido, em favor da liberdade, que escravas e escravos contratassem prestação de futuros serviços a terceiros, desde que houvesse consentimento do senhor e por período nunca maior que sete anos. Já no parágrafo 5º, que assegurava a alforria com cláusula de prestação de serviços, mesmo que não fosse cumprida a condição dos serviços prestados era previsto, em caso de não cumprimento, que o liberto condicional fosse constrangido a cumpri-la em estabelecimentos públicos ou contratando seus serviços a particulares, mediante a intervenção de um juiz de órfãos.

Com relação à libertação das crianças nascidas de mães escravas, os chamados ingênuos, principal referência a essa lei, o procedimento não mudava. O “ingênuo”, amarrado ao proprietário da mãe por meio de tutela, seguia prestando serviços a ele pelo menos até completar 21 anos. Do contrário, prestaria serviços para o Estado em obras públicas. Importa destacar aqui que a coerção e o constrangimento ao trabalho tiveram continuidade legal após o 13 de Maio por meio das tutorias de órfãos, categoria na qual foram enquadradas muitas filhas e filhos de escravas em virtude do sub-registro dos nomes dos pais, como demonstrado pela historiadora Isabel Reis

A gramática da libertação legal era permeada pela expectativa de controle, compulsoriedade do trabalho e disciplina, aspectos que ficam evidentes no artigo 6, parágrafo 5º da lei de 1871, onde se lê que, em geral: “os escravos libertados em virtude desta lei ficam durante cinco anos sob a inspeção do governo. Eles são obrigados a contratar seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos públicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho sempre que o liberto exibir contrato de serviço”.

O caso de Febrônia, que abre este texto, guia-nos pela problemática da liberdade e do “trabalho livre” nesse tempo, um terreno pantanoso. Se, de um lado, ela teve sua condição de não-escrava reconhecida, visto que era contratada, por outro, Olegário foi descrito como “seu proprietário” por ter realizado o pagamento da carta de alforria ao tal Bernardo. Isto posto, Febrônia, liberta condicional, submetida “as penas estipuladas” pela Lei de 1871, gozava de uma condição de liberdade difusa, imperfeita, que fazia de Olegário dono não apenas da sua força de trabalho, mas também dela, “libertanda”, pelo menos por 6 anos e 9 meses. Uma síntese dessa condição e expectativa de liberdade e trabalho foi traduzida pelo tabelião, segundo o qual, “foi declarado pela referida liberta que contrata e se obriga a prestar serviço ao referido proprietário”. Em termos objetivos, naquele contrato estava previsto não apenas o aluguel da força de trabalho. O acerto versava sobre o aluguel da trabalhadora acrescida do seu desempenho, de modo que, com base nesse cálculo, se estipulava o valor/tempo de prestação de serviços.

A propósito, acompanhemos Andronio nessa movimentação de trabalhador escravizado a trabalhador livre. O contrato dele se deu poucos anos depois do acerto de Febrônia, em 25 de maio de 1883, conforme registrado em Livro de Notas disponível no Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB). Andronio, analfabeto, descrito como um liberto pardo escuro, dirigiu-se ao cartório de José Augusto D’Abranches, em Salvador, a fim de estabelecer contrato de prestação de serviços com José Joaquim da Costa. Ambos eram de Feira de Santana. Segundo o tabelião, foi dito por Andronio que estava “justo e contratado […] para acompanhá-lo em sua viagem a Portugal ou qualquer parte da Europa pelo espaço de quatro anos […], mediante o salário anual de duzentos mil réis, moeda brasileira, por quanto foi liberto por seu senhor Joaquim José da Costa”, irmão do contratante. E continuou: “disse mais que se obriga a morar, acompanhar e viver […] e prestar os serviços que puder, sujeitando-se às penas da lei deste Império se faltar a qualquer das obrigações que por estas escrituras lhe são impostas”. Já, pelo contratante, “foi dito que aceitava” as condições do contrato. Por certo, a escritura foi lavrada em cartório pouco antes de viajarem para Europa, por isso foi registrada em Salvador.

Escritura de Prestação de Serviços de Andronio. Fonte: Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB).

Temos nesses contratos uma espécie do que Marcel van der Linden chama de “forma intermediária de trabalho assalariado”, de modo que, nesse programa, a passagem da escravidão à liberdade não se dava num instante, tampouco da escravidão para o mercado de trabalho livre, onde as trabalhadoras libertas e os trabalhadores libertos negociariam livremente o valor da força de trabalho, nem mesmo observamos essa separação do aluguel do trabalho do aluguel dos trabalhadores. Eram formas precárias de trabalho dependente que foram regulamentadas a partir da adesão das elites e do Estado a um projeto político do “reino da liberdade” em contraposição aos horrores da escravidão, que deveriam ser extinguidos do seio da nação – ideologia que começa a ser produzida efetivamente no final do século XIX.

 

Assista ao vídeo da historiadora Flaviane Nascimento no Acervo Cultne sobre este artigo:


Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados).

Ensino Médio: EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes – incluindo as quilombolas – no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

 

 

Flaviane Ribeiro Nascimento

Doutoranda em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora do Instituto Federal da Bahia (IFBA); E-mail: flavianeribeiro@ifba.edu.br; Instagram: @flavis8

 

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile