O vestido de fazer Cuscuz

Querido Dan,

Essa carta consiste numa fração de amor traduzida sob algumas reflexões que fiz pensando em você. À medida que ela foi se formando, fui tomada pela lembrança viva e cortante do menino doce que embalou meus dias; e em como os arroubos e sonhos de adolescente, que vão guiando seus passos rumo à idade adulta, fortalecem nossa esperança em dias menos tristes como esses que estamos vivendo. Pensei bastante antes de escrever-lhe, enleada por várias circunstâncias. Primeiro pelas incertezas, junto ao fascismo que vai se esgueirando, sorrateiro, em nosso país, e em seguida pela pandemia e seus desdobramentos dos instantes que inevitavelmente incidem na reinvenção de nossas vidas.

O momento, eu sei, está sendo desafiador pra todos nós. Estamos reaprendendo diversos hábitos, inclusive, a redefinir nossa relação e convivência. Como a nossa casa deixou de ser apenas o espaço em que convivíamos familiarmente, absorvendo agora atividades que realizávamos no espaço público, ela passou a ser, de certa forma, a escola, o trabalho, a universidade. Ser mãe e mulher de forma integral no espaço privado me fez rememorar diversas situações e imagens que compuseram e continuam a traçar nossa história de mãe e filho.

O tempo nos impele à construção de nossas memórias, e, nessa senda, vemos jorrar a necessidade e a delicadeza de um olhar que transponha o visível. Na sombra do cotidiano, colhemos as imagens e vamos tecendo o nosso dia a dia, como em minhas reminiscências que esquadrinham uma passagem para momentos e coisas e dentre elas, a roupa que você intitulou carinhosamente como o vestido de ‘fazer cuscuz’. Tenho vivo em minha memória, forte como um dia ensolarado, seu contentamento, principalmente, nos momentos de cumplicidade em que eu chegava do trabalho e ia preparar a sua comida. 

Talvez você nem saiba, mas durante longo tempo esse vestido foi para mim o significado de diversos conflitos, que você em sua meninice adivinhava-os, sempre questionando o motivo do seu sumiço. Sentia-me feliz em usá-lo, porque sabia o quanto aquilo alimentava a sua imaginação de menino, como nos rituais antes de dormir em que você ouvia atentamente cada história a seu tempo, buscando no ritmo da minha voz a magia que ia compondo a inevitável fantasia. Mas eu era também invadida pelas dúvidas que me aquietavam o espírito. Perguntava-me se não estaria nesse vestido o símbolo no qual me encerrava numa situação que subjuga meu corpo, me colocando num espaço de domesticidade e opressão; ora, com tantas outras roupas e tantas outras atribuições, que assumo enquanto mulher, o que ficou em destaque para você foi uma roupa que me reduz ao espaço da cozinha. 

Confesso que me sentia péssima, que tipo de mãe pensa em queimar um vestido colorido e lúdico, vetor de tantas alegrias, companheiro da ansiosa espera do afago de sentir-se alimentado. Mas, nesses conflitos, filho, também procurei por respostas sobre minha condição de mãe e mulher. Depois que nos tornamos mães não deixamos de ser mulher. Ao contrário, me tornando mais forte, me tornei também outras, e essa multiplicidade nos dá a dimensão e a compreensão das escolhas que fazemos. Além de mãe, também sou cidadã, portanto, tenho muito a realizar.

Lembro-me de tentar explicar-lhe que não queria mais usá-lo, e sua imponente declaração de que não me perdoaria, me fez repensar minha relação com você, na condução da sua educação e na necessidade de refletirmos constantemente sobre essa organização social que nos coloca homens e mulheres em espaços tão bem delimitados e naturaliza símbolos e comportamentos. 

Conversei, à época, com uma amiga sobre essa reflexão. Ela me taxou de dramática e exagerada, me acusou de radical e disse que eu estava sendo muito dura.  Afinal você não tinha idade para reproduzir o machismo. O vestido simbolizava seu afeto, nada mais além disso. Não que eu tivesse dúvida. Era afeto também, mas fingir que não me sentia incomodada e não problematizar, estava fora de questão. Deixei, portanto, de usar o vestido e dei por encerrado o assunto.

Agora em que passamos nossos dias em casa, reaprendendo nossa convivência, exercitando nossa relação, muitas histórias são reavivadas e o vestido, que já havia sido esquecido, veio à tona de forma casual, ali no espaço da cozinha, em que nós preparávamos o café da manhã eu e você. Sua curiosidade sobre o motivo de eu tê-lo doado foi o tema de uma longa conversa. Você parece não ter compreendido minhas razões. 

Sabe Dan, educar um filho, e sobretudo um menino, numa sociedade tão machista e opressora quanto a que vivemos, não é tarefa fácil quando decidimos pelo compromisso de educar para uma consciência crítica, numa cultura dominante patriarcal que todos os dias reforça a desigualdade, e naturaliza essas diferenças em todas as instituições. Ter um filho, constituir uma família é necessariamente estar nessas instituições, colaborar com ela e viver em alerta para a possibilidade de estarmos reproduzindo o machismo nosso de cada dia. 

Precisamos nos despir de preconceitos, nos reconstruindo todo o tempo, vigilantes para aquelas posturas ainda machistas que estão arraigadas em nós, numa estrutura cujas relações são pautadas na dominação, em que a opressão justifica-se através de discursos que ainda nos enreda nas armadilhas como as divisões de tarefas domésticas, e as duplas ou triplas jornadas que nós mulheres realizamos, garantindo o título de guerreiras, deusas, mães ternas e sensíveis, imagens que estão sempre abaixo ou acima dos homens, nunca em situação de igualdade. Fomos educadas assim e redefinir o caminho requer estar aberta ao novo, com ações firmes, buscando novas estratégias, reinterpretando a história.

Não pretendo ser exemplo de perfeição, nunca quis, mas quero ser para você, exemplo de coerência e amor, na tentativa de preparar-lhes para que se sinta capaz de atuar numa sociedade mais justa e igualitária. Amo você meu filho, e espero que esse amor junto à consciência de quem você é no mundo, fortaleça o seu viver, o seu caminhar.

Hoje, mais madura e mais consciente penso que talvez minha amiga tivesse certa. O vestido era lindo e eu gostava muito dele. Acho que por isso, você também gostasse, porque percebia a minha alegria, como eu me sentia bem; mas naquele momento foi o melhor que pude fazer por mim e por você.

Um beijo, 

de sua mãe, Catherine Santana

Catherine Santana – mãe de Cecília, Dancan e Heitor

Professora de Linguagens na Sec-Ba

Mestra em Letras: Linguagens e Representações pela Uesc

Doutoranda no PPGL-UESC com pesquisa em andamento sobre

Literatura de autoria feminina e Estudos de Gênero

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