O Vira-lata e o Racismo

Dizem que o brasileiro tem complexo de vira-lata. Reza a lenda que o brasileiro se considera um mestiço, o produto da miscigenação das raças branca, negra e índia, com alguma contribuição mais recente também de imigrantes do Japão e Oriente Médio.

Por Fernando Lanzer, Fonte: fernandolanzer

Foto:  Elton Melo

Pelo fato de ser mestiço, o brasileiro se sente inferior, basicamente em relação aos Estados Unidos e à Europa. Ocorre que esse sentimento está ligado a um profundo racismo!

Ao invés do vira-lata ter orgulho da sua viralatice, do fato de ser mestiço, o vira-lata sente vergonha do que é. O vira-lata acha que o bom mesmo é ser raça-pura. O vira-lata é tão racista quanto o pastor alemão do kennel club de elite. O brasileiro que tem complexo de vira-lata é tão racista quanto os líderes neo-nazistas de outras partes do mundo, pois acredita que o bom mesmo é não ser mestiço, é ser raça-pura.
Vivemos presos a um conceito do século 19 segundo o qual o purismo racial é algo a ser admirado e determinadas raças são superiores a outras. O pior desse conceito não é nem a ideia de que existem raças superiores e raças inferiores; o pior é o conceito de que a pior coisa é a mistura das raças. Achamos que o mestiço é pior do que a pior das raças puras. Esse é o maior equívoco da nossa sociedade. Somos nazistas e não sabíamos. Hora de acordar!

Do ponto de vista biológico, a miscigenação nos dá um repertório maior de respostas aos desafios do meio-ambiente. O conceito Darwinista de evolução pela sobrevivência dos mais aptos reforça o valor dos mestiços, que são portadores de uma bagagem genética mais diversificada e portanto mais capazes de se adaptarem às mudanças cada vez mais rápidas do mundo de hoje. Entretanto, não esqueçamos que a realidade do Século 21 revelou que a genética nem é tão importante assim, para princípio de conversa. Ela pesa, sim, na determinação da personalidade e da capacidade e competência de todos nós, mas pesa muito menos do que a cultura, do que o ambiente no qual crescemos e nos desenvolvemos como pessoas.

Se a cultura é um fator mais importante do que a genética, fica mais claro ainda o valor da diversidade. Com a facilidade de comunicação e transportes que temos hoje, não existe cultura nenhuma que não esteja sendo influenciada por outras, em maior e menor grau. A cultura brasileira, nesse contexto, é um prenúncio do que pode acontecer no futuro, pois ela é um produto de miscigenação cultural, mais ainda do que da miscigenação de raças.

Falta-nos, apenas, acabar com o complexo de inferioridade. Somos vira-latas, sim, por genética e por verdadeira mescla cultural; devemos ter orgulho disso e continuar aumentando a mescla cada vez mais.

Racismo e cultura

A origem do racismo, na verdade, está na cultura, no tribalismo mais primitivo. Está na noção de que “nós somos nós e eles são eles; nós somos fiéis à nossa tribo, aos nossos costumes, e quem tem costumes diferentes está errado. Os nossos valores são os valores certos, a nossa religião é a única verdadeira e tudo aquilo que é diferente deve ser rejeitado e destruído.”

Essa era a realidade dos homens pré-históricos. A humanidade evoluiu nos últimos 10.000 anos… ou será que evoluiu mesmo? Quando leio os comentários feitos na internet, seja o assunto futebol, política, religião, economia ou televisão, me parece que trocamos tacapes por tabletes, mas a mentalidade é a mesma. O racismo está vivo entre nós, o nazi-fascismo floresce. Talvez utilizemos outros nomes para atenuar a barbárie, mas a essência é assustadoramente igual.

Persiste a ideia do “nós contra eles”, nossa tribo contra a tribo deles, por vezes insuflada deliberadamente por líderes irresponsáveis preocupados apenas em satisfazer sua própria ganância no curto prazo, seja na política, no futebol ou na religião.

O Brasil, por ter uma cultura que gerou o complexo de inferioridade do vira-lata, incorporou o hábito equivocado de idealizar e imitar os outros. Na época da Colônia, idealizávamos e imitávamos Portugal; no Império e na jovem República, passamos a idealizar e imitar a França; depois da II Grande Guerra e até hoje, idealizamos e imitamos os Estados Unidos. Não paramos de idealizar e imitar os outros.

Foi preciso que um estrangeiro como o sociólogo italiano Domenico De Masi viesse ao Brasil e nos dissesse aquilo que deveríamos ter descoberto sozinhos: que nosso maior tesouro está nas nossas raízes culturais, na nossa origem indígena e na miscigenação de raças e culturas desses índios com os imigrantes de todo o mundo. O Brasil é um vira-lata admirado pelos outros e com vergonha de si mesmo. O racismo é combatido na Europa e nos Estados Unidos, mas continua vivo entre nós no Brasil, disfarçado. Invertemos o processo das tribos primitivas e fomos de um extremo ao outro: ao invés de acharmos que a nossa cultura, os nossos valores, são os melhores e os outros estão errados, achamos que os nossos valores, por serem mestiços, estão errados, enquanto que americanos e europeus são melhores do que nós, porque são mais “puros”.

O paradoxo é que continuamos a acreditar em ideias (raça pura) que os outros abandonaram. Continuamos a comprar os produtos (intelectuais) que no primeiro mundo já foram substituídos por coisas melhores.
Precisamos deixar de imitar os outros e descobrir o valor da nossa própria identidade mestiça. Precisamos utilizar essa identidade para construir nosso futuro de acordo com o que realmente queremos ser e não de acordo com o que funcionou no passado para outras culturas. Precisamos entender que nenhuma cultura é melhor nem pior do que outra. A cultura brasileira não é pior e nem melhor do que outras. Nossa qualidade maior é justamente o fato de sermos uma mistura de várias outras. O que precisamos é apenas assumir nossas qualidades, boas e más, sem nos sentirmos piores nem melhores do que os outros.

Eu sou um vira-lata “brasileuro” (Brasil + Euro) e com muito orgulho. Nasci e me criei no Brasil, vivi nos Estados Unidos e moro na Europa desde 2003. A Europa é o continente mais diversificado do mundo e está passando por uma enorme transformação social, que pode determinar o futuro da humanidade. Essa transformação é justamente a integração de culturas, um processo no qual o Brasil está mais avançado do que qualquer outra nação. O futuro do planeta pode estar começando aqui, no Brasil. Nós podemos dar o exemplo para a Europa. Espero que não sejamos os últimos a nos dar conta do que está acontecendo e do nosso papel como brasileiros nesse processo todo.

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