Oferecer ‘cura gay’ no país que mais mata LGBTs no mundo é reforçar ciclo de violência

“As chamadas terapias de ‘reorientação sexual’ produzem violências das mais variadas ordens”, afirma especialista.

Por Andréa Martinelli Do Huffpost Brasil

AFP/GETTY IMAGES

Em 2018, psicólogos que dizem fazer terapia de reversão sexual, popularmente conhecida como “cura gay“, estão mais seguros na oferta do tratamento. Uma decisão judicial de dezembro do ano passado permite que eles acolham pacientes que não aceitam a própria orientação sexual e sofrem da chamada “orientação sexual egodistônica“.

Na decisão, o juiz da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, Waldemar Claudio de Carvalho, afirma que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) não deve vetar o acesso de tratamento psicoterapêutico a LGBTs que procurem por ele e proíbe que o conselho puna os profissionais que assim procederem por considerar que uma penalidade representaria “dano à liberdade profissional para produção científica”.

“As chamadas terapias de reorientação sexual produzem violências das mais variadas ordens”, avalia o diretor do CFP Pedro Paulo Bicalho, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em entrevista ao HuffPost Brasil.“O que nós precisamos enfrentar é a LGBTfobia, que faz que muitas pessoas sofram com a sua condição de homossexual. Não a homossexualidade, em si”, completa.

Em 15 de setembro, em uma decisão liminar, o juiz escreveu que o Conselho Federal de Psicologia não deveria impedir “atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”. Já na decisão final, em dezembro, ele limita esse tipo de atendimento à “plena investigação científica dos transtornos psicológicos e comportamentais associados à orientação sexual egodistônica”.

Na avaliação do magistrado, é dever do Judiciário “impedir que o CPF, ainda que motivado no combate à homofobia, leve a efeito qualquer espécie de censura aos psicólogos que queiram promover eventual estudo ou investigação científica relacionada à orientação sexual egodistônica”. Ele afirma ainda que a Constituição assegura a liberdade de pesquisas na área:

REPRODUÇÃO/TRF-1

O juiz ainda ressalta que, embora atendimentos dessa natureza estejam liberados para psicólogos nessas condições, a propaganda desse tipo de terapia está vedada.

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De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID), egodistonia é um transtorno relacionado à aceitação da identidade ou da orientação sexual. “Nós vivemos no País que mais assassina LGBTs no mundo. Ou seja, por conta de determinada orientação sexual, as pessoas são mortas, expulsas das escolas, das famílias e é por isso que querem deixar de ser homossexual. Não é por conta da homossexualidade em si”, aponta Bicalho.

O magistrado responde a uma ação popular de um grupo de psicólogos que alegam estar sendo alvo de perseguição e censura pelo CFP. A Resolução nº 01/99, de 22 de março de 1999, da entidade, determina que os psicólogos “não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”.

Uma prática psicológica não pode ser construtora de sofrimentoPedro Paulo Bicalho, doutor em Psicologia e diretor do CFP.

A norma segue orientação da OMS (Organização Mundial da Saúde), que, em maio de 1990, deixou claro que a homossexualidade não é doença ao retirar a orientação sexual da lista de doenças mentais da CID.

O CFP afirmou que recorreria da decisão, classificada como “equivocada” e deixou claro que “a psicologia brasileira não será instrumento de promoção do sofrimento, do preconceito, da intolerância e da exclusão”.

“Apontar a quantidade de violências que são construídas a partir de uma decisão como essa é a nossa prioridade. Não é porque somos um conselho pró-direitos LGBT, mas principalmente porque essa é uma prática que não pode ser entendida como psicológica. Uma prática psicológica não pode ser construtora de sofrimento”, aponta Bicalho.

Um dossiê que pretende apontar todos os tipos de violência contra LGBTs e por que é importante combatê-los está sendo elaborado pelo conselho. A previsão é que o material, que será direcionado à sociedade e não só a psicólogos, seja divulgado ainda em abril deste ano.

Os equívocos da decisão que permite ‘cura gay’

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Segundo o Conselho Federal de Psicologia, a decisão do juiz do DF traz dois equívocos: um deles diz respeito à regulamentação da pesquisa científica e outro, a manutenção da resolução 01/99 em sua integralidade. O órgão que regula oficialmente pesquisas científicas não é o CFP mas, sim, o Comitê Nacional de Ética (CNE), ligado ao Ministério da Saúde. “Ele [o juiz] transforma a nossa resolução em algo que ninguém sabe mais o que fazer com ela; uma resolução que se mantém íntegra, mas que deve ser interpretada da maneira como ele determina”, critica Bicalho.

O que ainda está imposto é que a heterossexualidade é o modo ‘normal’ de expressão da sexualidade. E não é.Renan Quinalha, adgovado especialista em Direitos LGBT

A parte em que o magistrado proíbe a propaganda é considerada o único ponto positivo da resolução por especialistas. O advogado Thiago Coacci, membro da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/MG, considera que o juiz “força uma nova intepretação” que tenta anular a resolução, mesmo apontando no texto que não entende a homossexualidade como doença.

“A interpretação que ele dá anula os efeitos da própria resolução. Então, o que ele faz? Ele fala, ‘olha, a resolução continua aí, mas ela não vale para nada’. A decisão retira a própria eficácia da resolução”, afirma. “A ideia de homossexualidade egodistônica é um resquício da patologização da homossexualidade. Você não escuta pessoas falarem sobre heterossexualidade egodistônica”, completa.

Para o também advogado e especialista em direitos LGBT Renan Quinalha, a decisão é construída para confundir. “Ele parte da ideia de que [a homossexualidade] é um desvio mesmo, tanto que ele usou na liminar a ideia de ‘reorientação sexual’. Você só reorienta aquilo que está desorientado ou está orientado em um sentido equivocado. O que ainda está imposto é que a heterossexualidade é o modo ‘normal’ de expressão da sexualidade. E não é”, conclui. ​​​​​​

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