É difícil para os EUA saírem por aí dando lições de diversidade para o resto do mundo porque também eles têm dever de casa a fazer. É o que diz Gina Abercrombie-Winstanley, 64, que assumiu em abril o recém-criado cargo de chefe de Diversidade e Inclusão do Departamento de Estado americano, novidade do governo Joe Biden.
“Não sendo os EUA perfeitos, não há uma nação para a qual possamos pregar e dizer ‘você deveria fazer assim ou assado’”, afirma à Folha, numa conversa na residência do cônsul-geral de seu país, em São Paulo.
O Brasil foi sua primeira parada num giro internacional, o primeiro desde que assumiu a posição. Em sua passagem por São Paulo, no começo de dezembro, a diplomata que serviu como embaixadora em Malta pelos quatro anos finais da gestão Barack Obama não esbarrou com muitas pessoas negras como ela.
“Certamente notei que a maioria das pessoas que vi era branca. Com certeza mais claras do que eu. E sabendo que a população é próxima do 50%-50% [negros e brancos], eu me perguntei: ‘Ok, cadê todo o resto?’.”
Abercrombie-Winstanley já definiu o Departamento de Estado como “pale, male and Yale” —branco, masculino e com muitas cabeças importadas de Yale, uma das universidades prediletas da elite americana. O jogo está mudando, mas ainda tem chão, diz. “Não estamos onde deveríamos estar.”
A diplomata reconhece que a agenda da diversidade provoca o efeito “backlash”, como chamamos um rebote agressivo de grupos relutantes a mudanças sociais em marcha. Daí a robustez da ultradireita hoje, com sua aversão a pautas identitárias em ascensão. Aqui Abercrombie-Winstanley vai de Nina Simone: “Em 1976, ela escreveu uma canção chamada ‘Backlash Blues’. Então não é um tema novo.”
O que traz a senhora ao Brasil? É a minha primeira viagem nessa nova posição, e [o país é] minha primeira parada no meu giro pelo mundo. O Brasil era particularmente atraente, porque temos essa ótima parceria. Compartilhamos um compromisso com a democracia. E nós, como uma nação diversa, sabemos que com vocês, também uma nação diversa, compartilhamos desafios.
A sra. visitou uma exposição sobre Carolina Maria de Jesus, no Instituto Moreira Salles. Gostou? Sim, fascinante! Terei que voltar também ao Masp, ambos eram fascinantes. Eu não sabia nada sobre ela antes de chegar lá. Foi inspirador, como pessoa negra e como mulher negra, ver alguém batalhar até conseguir que sua voz fosse ouvida em tempos tão difíceis para mulheres, que dirá para mulheres negras.
Em geral, lugares frequentados pelas classes sociais mais altas do Brasil têm mais pessoas brancas, ainda que mais da metade da população seja composta por pretos e pardos. Qual foi sua primeira impressão sobre diversidade no país? Foi uma viagem curta, então posso falar apenas de forma limitada sobre São Paulo. Certamente notei que a maioria das pessoas que vi era branca. Com certeza mais claras do que eu. E sabendo que a população é próxima do 50%-50% [no Brasil, 56,2% se dizem pretos ou pardos], eu me perguntei: “Ok, cadê todo o resto?”. Então terei que voltar para ter um panorama maior.
A sra. disse, em entrevista ao Huffington Post, que costumava ver um Departamento de Estado americano “pale, male and Yale” [branco, masculino e formado em Yale]. Isso mudou? Sim. Há muito mais gente que vem de outras universidades que não Yale ou outras instituições de elite. Mas não estamos onde deveríamos estar. A realidade é: minha posição é necessária.
Falamos sobre a necessidade de verdadeiramente abraçar e viver os valores [de igualdade]. Todo mundo precisa ter a mesma oportunidade. Todo americano é igual. Fomos criados desde cedo com essa ideia. E ainda assim, como sociedade, não alcançamos o lugar onde alegamos querer estar. Dentro do Departamento de Estado, na gestão Biden, estamos empolgados sobre as possibilidades de fazer valer nossas palavras. Então, temos trabalho a fazer.
O que a sra. acha das políticas afirmativas para a inclusão de negros? Temos uma decisão [judicial] de 1978, faz tempo. A Suprema Corte limitou nossa capacidade de usar cotas, isso criou uma dificuldade para conseguirmos implementar mudanças. Temos que ser mais criativos, pensar fora da caixa, para tentar chegar aonde queremos. Na minha organização, quando queremos contratar alguém, insistimos que os candidatos sejam diversos. E tentamos selecionar o melhor entre eles.
Nos últimos anos, a ultradireita tem ganhado poder ante o avanço de agendas identitárias. É o tal efeito rebote [“backlash”]? Sim. Alguém usou essa palavra comigo ontem. Me lembrou de Nina Simone. Em 1976, ela escreveu uma canção chamada “Backlash Blues”. Então não é um tema novo. Acho que, com qualquer mudança, o rebote vem. As pessoas sempre vão ser relutantes diante da mudança. Ainda que você entenda que o destino final é onde precisamos estar, somos preguiçosos, acomodados. Então é preciso o dobro de energia. Rebotes têm acontecido, e nós os superamos.
Quais foram os efeitos dos anos Donald Trump nas políticas de diversidade dos EUA? Houve o rebote. As pessoas que resistiram a mudanças acharam que fomos longe demais ou que fomos rápido demais. Mas acredito que a maioria de nós sabe —não apenas acredita, sabe— que nossa força vem da nossa diversidade.
O presidente Jair Bolsonaro tem um histórico de colisões com grupos que defendem o direito de minorias: os movimentos feminista, negro, LGBTQIA+. O governo americano acha que esses temas têm sido respeitados no Brasil? Estamos tentando mostrar por meio do nosso exemplo. Temos uma parceria com o Brasil, trabalhamos juntos, reconhecemos os desafios em comum. Mas cada país tem um jeito de se dirigir a eles a partir de suas próprias circunstâncias. Nenhum de nós é perfeito, deixe-me ser clara.
Disse várias vezes em minha estadia aqui que, quando falo sobre inclusão e diversidade, nenhum de nós deveria ficar na defensiva, porque todos nós podemos cometer erros. Não sendo os EUA perfeitos, não há uma nação para a qual possamos pregar e dizer “você deveria fazer assim ou assado”, porque também estamos descobrindo nosso caminho.
Kamala Harris, a primeira mulher negra eleita vice-presidente dos EUA, tem recebido fortes críticas por seu desempenho no cargo. Vê um componente racial aí? Pela minha própria experiência, e qualquer mulher concordaria, é difícil estar sob os olhos públicos —com certeza na política, um ambiente dominado por homens. As pessoas vão ser rápidas em apontar seus passos em falso, ou qualquer coisa que você vá fazer que fuja da norma. Certamente, questões de gênero estão envolvidas, raciais muito provavelmente também. É difícil ser a primeira, é difícil.
Acha que os EUA ainda são um país racista? Bom… Não sei se posso falar pelo país inteiro. Acho que reconhecemos que temos trabalho a fazer. E começa com uma avaliação honesta sobre onde estamos e aonde precisamos ir.