Olimpíadas

(Foto: Marcus Steinmayer)

Recusando-se a cumprir o script adotado pela mídia na cobertura dos fatos olímpicos em que pieguices e retórica melodramática são ingredientes para potencializar as audiências, Daiane dos Santos restringe-se a um econômico ‘‘eu errei”. Sem lágrimas, dramas ou explicações justificadoras, frustrou num primeiro momento a política de espetáculo que orienta o comportamento da mídia nessas ocasiões, para decepção de seus entrevistadores.

Por Sueli Carneiro

De igual maneira, afastando-se das manipulações políticas que rapidamente se seguiram ao episódio que pode ter-lhe usurpado a medalha de ouro na Maratona de Atenas e manifestando a alegria por mais uma demonstração de superação que é característica do povo pobre e esquecido deste país, Wanderlei Cordeiro de Lima afirma com a tranqüilidade dos verdadeiros vencedores. ‘‘Não sei se venceria”. Satisfeito, atingira a meta que se colocara: chegar entre os três primeiros daquela competição, apesar dos percalços. Quantos de nós atingem metas a que nos propomos mesmo sem percalços?

Wanderlei, Daiane parecem gente despreparada para esse contexto em que dignidade e coragem são palavras cujo sentido se perderam em tempos imemoriais. Não cumpriram bem o script, não entendem que o show tem que continuar e que caberia a eles o papel de bonecos amestrados que, ao primeiro spot, devem verter lágrimas, derramar-se em desespero, consternação ou euforia. É o que exige a audiência.

Mas de nada adiantam essas demonstrações de humanidade, coragem e dignidade da parte desses atletas. O esquema está pronto para a mudar a estratégia quando alguém ‘‘erra a fala”. É preciso, a qualquer preço, fazer com que eles rendam notícias, matérias, argumentos políticos, alocação de verbas etc. Daí que, na ausência das esperadas lágrimas e dramalhões diante dessa ou daquela derrota, passe-se a investir em outros produtos: a coragem e maturidade de Daiane ou o espírito olímpico de Wanderlei. É de dar nojo.

Outro que não entendeu o enredo desse samba, embora preto, é Diogo Silva, o lutador de taekwondo. Apesar de seu feito histórico ao alcançar o melhor resultado da modalidade numa Olimpíada, 4º melhor do mundo, preferiu, diante da derrota na disputa do bronze, expressar com gesto mundialmente conhecido o seu protesto pela falta de apoio àquele esporte. Escolheu para isso o gesto dos Panteras Negras inconscientemente ou não associou-o simbolicamente à histórica falta de apoio à sua gente. Gabriel Mangabeira rapidamente percebeu que se esperasse pelo apoio de seu país estaria fadado a ter que desistir de seu talento: foi tentar a sorte nos EUA. Resultado: é o primeiro nadador negro do Brasil a alcançar sozinho uma final dos jogos, além de bater o recorde sul-americano dos cem metros nado borboleta. O resumo da ópera para ele é: ‘‘É tudo uma questão de oportunidade” .

Matéria veiculada por um dos canais de esporte que cobriram as Olimpíadas teve como título ‘‘As atletas abandonadas”. Referia-se a quatro mulheres negras, fundistas, que estavam em Atenas sem técnicos, ajudando-se mutuamente, treinando umas às outras por ausência de suporte institucional e logístico. A seleção feminina de futebol, contando quase exclusivamente consigo mesma e com a determinação e sensibilidade de um técnico – que relatou que sequer dispunha de um instrumento de informática adequado que lhe permitisse estudar a performance das adversárias – alcança medalha de prata para um país que as trata com desprezo ou indiferença.

Em artigo na Folha de São Paulo de 28/8, Lars Grael afirma que ‘‘o esporte de alto rendimento mostra para o mundo o quanto uma nação é digna. De certa forma, é um atestado de sua civilidade. Os grandes heróis olímpicos servem de exemplo para o povo. Demonstram, com sua garra, vontade e superação, um caminho alternativo de sucesso”. Os atletas aqui mencionados mostram para o mundo e, sobretudo, para o próprio país, de que lado se encontra a dignidade e civilidade no Brasil. Recusando a vitimização – como Daiane -, a demagogia e a manipulação política – como Wanderlei -, denunciando a ausência de condições necessárias para que os resultados positivos do país nas disputas desportivas sejam consistentes e persistentes e não fruto apenas do heroísmo eventual desse ou daquele atleta – como Diogo e Gabriel – demostrando todos eles a capacidade de administrar vitórias e fracassos, revelam com seus exemplos que a renovação de nossa consciência ética reside do lado mais fraco da correlação de forças da sociedade.

Do seu lado hegemônico mantêm-se as velhas e carcomidas práticas: da mídia e gestores públicos a dirigentes esportivos persistem o ufanismo demagógico e oportunista. Pegam carona nos esforços individuais de atletas sobre cujos feitos não têm nenhuma responsabilidade, a não ser a de não lhes dar, de regra, o apoio e reconhecimento de que carecem, salvo a partir da evidência dos retornos materiais e simbólicos que são capazes de aportar aos diferentes interesses presentes nos esquemas desportivo do país. Esses heróis dizem para os governantes que os ‘‘brasileiros nunca desistem”. E talvez por isso mesmo os governos entendam que não é preciso se preocupar e efetivar a tal política de Estado alardeada por Galvão Bueno durante uma de suas narrações, cuja eficácia o gesto do lutador de taekwondo expressa de forma emblemática. Talvez se começássemos a desistir algo mudaria de fato.

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