ONU pede descriminalização do aborto no Brasil e veto ao marco temporal

FONTEUOL, por Jamil Chade
Conselho de Direitos Humanos da ONU - Imagem: Xinhua/Xu Jinquan

Num informe divulgado nesta segunda-feira, o Comitê da ONU para Direitos Econômicos e Sociais apresentou dezenas de recomendações ao Brasil e alertou, de uma forma geral, para a preocupação que existe na entidade sobre a situação da pobreza, fome, racismo e discriminação no país.

O informe foi publicado como resultado de uma sabatina na qual o governo de Luiz Inácio Lula da Silva se submeteu em Genebra, há duas semanas. Na ocasião, os 18 peritos do organismo questionaram a delegação brasileira sobre diversos aspectos das políticas de direitos humanos, sociais e de combate à pobreza.

Agora, em suas recomendações, o Comitê da ONU aponta para a necessidade de que o país lide com alguns de seus maiores desafios sociais.

No que se refere aos direitos sexuais e saúde reprodutiva, o órgão propõe a descriminalização do aborto e afirma:

O Comitê está preocupado com os obstáculos que as mulheres enfrentam para obter acesso ao aborto seguro, mesmo nos casos em que ele é legalmente permitido, especialmente para as mulheres que enfrentam formas de discriminação cruzadas. Também está preocupado com as altas taxas de mortalidade materna e com a falta de acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva apropriados e a informações em áreas rurais e periféricas.

O Comitê recomenda que o Brasil:

Reveja sua legislação criminal que proíbe o aborto para torná-la compatível com a integridade, a autonomia e a saúde das mulheres, em particular descriminalizando o aborto e ampliando as circunstâncias em que o aborto é legalmente permitido, e seja orientado pelo comentário geral do Comitê nº 22 (2016) sobre o direito à saúde sexual e reprodutiva e pelas Diretrizes da Organização Mundial da Saúde sobre o Aborto (2022);

Garantir a acessibilidade e a disponibilidade de serviços e informações de saúde sexual e reprodutiva adequados e de boa qualidade, inclusive o acesso a serviços de aborto seguro, incluindo medicamentos para aborto, contracepção e contracepção de emergência, para todas as mulheres e meninas adolescentes no Estado Parte, especialmente em áreas rurais ou remotas;

Tomar as medidas legislativas e administrativas necessárias para prevenir a mortalidade e a morbidade maternas, levando em conta a orientação técnica fornecida pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre a aplicação de uma abordagem baseada nos direitos humanos para a implementação de políticas e programas para reduzir a morbidade e a mortalidade maternas evitáveis.


Marco temporal, indígenas e clima

Um outro aspecto levantado pela ONU se refere à situação dos indígenas e de terras. A entidade insiste sobre a necessidade de que o marco temporal seja vetado, aumentando a pressão sobre o governo.

Há, neste momento, uma pressão para que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva rejeite o projeto de lei que foi aprovado no Congresso Nacional. O presidente tem até sexta-feira (20) para vetar ou sancionar o marco temporal.

De acordo com o informe, o Comitê está “preocupado com os relatos de que a apropriação de terras, o açambarcamento de recursos naturais, o grande número de disputas de terra não resolvidas e a alta concentração da propriedade da terra no Estado Parte prejudicam o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais de indivíduos e grupos desfavorecidos e marginalizados e desencadearam sérios conflitos sociais e violência”.

O Comitê, portanto, recomenda que o Brasil:

Estabeleça um mecanismo eficaz para proteger os direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas de possuir, usar, desenvolver e controlar suas terras, territórios e recursos em plena segurança e impedir a intrusão de terceiros ocupantes em suas terras e territórios, garantindo a alocação adequada de recursos financeiros, técnicos e humanos para sua implementação;

Agilizar a demarcação, regularização e titulação das terras e territórios dos Povos Indígenas, Quilombolas e outras comunidades tradicionais de acordo com as normas internacionais e defender seus direitos, rejeitando a aplicação e institucionalização da doutrina do marco temporal;

Garantir que os Povos Indígenas, Quilombolas e outras comunidades tradicionais afetadas por atividades econômicas e pela exploração de recursos naturais em seus territórios sejam consultados, recebam compensação por qualquer dano ou perda e obtenham benefícios tangíveis de tais atividades;

Tomar as medidas necessárias para respeitar e proteger o acesso justo à terra e aos recursos naturais e salvaguardar os direitos de uso da terra, especialmente para os camponeses sem terra e os trabalhadores rurais, acelerando a reforma agrária.

Ainda no que se refere aos povos indígenas, o Comitê está “preocupado com a falta de mecanismos legais eficazes para garantir que os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais sejam consultados sobre medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los”.

“Também está preocupado com o fato de que o Estado Parte continua a conceder licenças para a exploração de recursos naturais e investimentos de grande escala sem realizar sistematicamente consultas com o objetivo de obter o consentimento livre, prévio e informado dos Povos Indígenas, Quilombolas e outras comunidades tradicionais”, disse.

O Comitê, portanto, recomenda que o Brasil:

Em consulta com os Povos Indígenas, Quilombolas e outras comunidades tradicionais, levando em consideração suas características culturais, modos e costumes, desenvolva e implemente uma lei e protocolos efetivos, apropriados e legalmente vinculantes, incluindo requisitos claros em relação à forma de consultas e sua representação, para garantir o respeito total ao seu direito de ser consultado para obter seu consentimento livre, prévio e informado em relação a decisões que possam afetá-los;

Tomar as medidas administrativas necessárias para garantir que as consultas prévias sejam conduzidas de forma sistemática e transparente para obter o consentimento livre, prévio e informado dos Povos Indígenas, Quilombolas e outras comunidades tradicionais em relação a decisões que possam afetá-los, notadamente antes da concessão de licenças para a realização de investimentos de grande escala e exploração de recursos naturais nas terras e territórios que tradicionalmente possuem, ocupam ou usam, mesmo no contexto do pedido de suspensão de segurança;

Incorporar sistematicamente no processo de consulta prévia a realização de estudos independentes sobre o potencial impacto social, ambiental e sobre os direitos humanos dos investimentos de grande escala ou da exploração de recursos naturais sobre os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais envolvidas, e publicar os resultados desses estudos;

A ONU ainda afirmou que “está preocupada com o fato de que o Estado Parte (Brasil) não está no caminho certo para cumprir sua contribuição nacionalmente determinada no âmbito do Acordo de Paris”.

Diante disso, recomenda que o Brasil “tome todas as medidas necessárias para atingir suas contribuições determinadas nacionalmente no âmbito do Acordo de Paris, em particular nos setores de energia, agricultura e uso da terra, mudança no uso da terra e silvicultura, prestando atenção à formulação de uma estrutura política coerente e de todo o governo”.

Impostos inadequados e combate à pobreza

Um outro tema examinado pelo Comitê foi a questão fiscal no Brasil, considerada como fundamental para lidar com a pobreza e garantir direitos.

A ONU afirmou estar “preocupada com a inadequação da política fiscal para lidar com as persistentes desigualdades socioeconômicas e raciais” no Brasil. “O Comitê está preocupado com a parcela excessiva de impostos indiretos como proporção da receita total do Estado e com o fato de certas transferências não atingirem os segmentos populacionais que deveriam beneficiar”, disse.

O Comitê também está preocupado com o nível persistentemente baixo de financiamento e com a incidência frequente de desvio de fundos alocados para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Para lidar com essa realidade, o Comitê recomenda ao Brasil:

Adote uma política fiscal mais eficiente, progressiva e socialmente justa, entre outras coisas, revisando a receita derivada dos impostos cobrados sobre a renda pessoal e corporativa, ganhos de capital e impostos sobre transações, e a alíquota do imposto sobre herança e propriedade, com o objetivo de expandir a base tributária e o espaço fiscal para a realização progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, e para aumentar seus efeitos redistributivos;

Realizar uma avaliação completa, com a participação das partes interessadas sociais, dos efeitos de sua política fiscal sobre os direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo uma análise das consequências distributivas e da carga tributária sobre diferentes setores e grupos marginalizados e desfavorecidos;

Aumentar o orçamento alocado para programas de alimentação, seguridade social, habitação social, assistência médica, educação, serviços de emprego.

No documento, a ONU pede maiores esforços na luta contra trabalho infantil, trabalho escravo, e contra a informalidade.

Outro aspecto “preocupante” é o aumento da taxas de desnutrição crônica nos últimos anos no Brasil. “O Comitê também está preocupado com o fato de que um grande número de pessoas em áreas periféricas e rurais enfrenta insegurança alimentar moderada ou grave, particularmente grave em famílias chefiadas por mulheres”, disse.

Para esse aspecto, o Comitê recomendou que o Brasil:

Redobre seus esforços para proteger o direito à alimentação adequada e intensifique as iniciativas para responder efetivamente à insegurança alimentar, à desnutrição e à subnutrição, especialmente nas regiões norte e nordeste, com atenção especial às famílias chefiadas por mulheres afrodescendentes;

Aumentar o investimento na produção agrícola local, inclusive na estrutura do Programa de Aquisição de Alimentos, e melhorar a produtividade e o acesso ao mercado de pequenos agricultores para aumentar a renda nas áreas rurais;

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