Orgulho europeu explica racismo escancarado no RS, diz escritor 

FONTEPor Diogo Schelp, do UOL
Jeferson Tenório, escritor carioca radicado em Porto Alegre (Foto: Carlos Macedo/ Divulgação)

O escritor Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele (Cia.das Letras), foi o patrono da Feira do Livro de Porto Alegre de 2020, que se encerrou no último domingo (15). Pela primeira vez nos 66 anos da história do maior evento literário do Rio Grande do Sul, um escritor negro foi o homenageado. Em entrevista à coluna, Tenório disse que a morte de um homem negro, João Alberto Freitas, de 40 anos, em uma unidade do supermercado Carrefour na capital gaúcha, nesta quinta-feira (19), é a consequência de um ambiente em que predomina um discurso racista muito direto e escancarado.

Tenório nasceu no Rio de Janeiro e mudou-se para o Rio Grande do Sul aos 14 anos de idade. “No Rio de Janeiro, eu nunca havia sido abordado pela polícia. Quando cheguei aqui, já no mês seguinte sofri uma abordagem violenta, junto com amigos, em um campinho de futebol. Desde então, já foram mais doze abordagens policiais”, diz Tenório.

“Pela minha percepção, a raiz do racismo no estado está no orgulho que se tem da origem europeia. Principalmente no interior, onde muitos sequer se consideram brasileiros, se consideram europeus. Trata-se de uma cultura de reforço de estereótipos”, diz Tenório.

Estereótipos, por sinal, que são “exportados” e absorvidos como verdadeiros pelas demais regiões do Brasil. “Pouca gente sabe, mas cerca de 40% da população de Porto Alegre é negra e aqui é o segundo lugar com mais casas de umbanda do país, atrás apenas da Bahia”, diz o escritor.

“Esse sentimento de orgulho da origem europeia acaba se refletindo em Porto Alegre e cria um ambiente de invisibilidade da população negra”, avalia Tenório. “Existem aqui espaços de prestígio, lugares ou bairros de elite aos quais os negros não têm acesso.” Segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgado em 2017, Porto Alegre é a capital brasileira com maior desigualdade entre brancos e negros, pelo critério do IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal).

Tenório conta, por exemplo, que evita ir ao Moinhos Shopping, situado no Moinhos de Vento, um bairro nobre da capital gaúcha, para não ter incômodos com os seguranças do estabelecimento.

Jeferson Tenório diz que muitos porto-alegrenses não sentem sequer vergonha de serem racistas. “Numa entrevista de emprego, quando eu era jovem, o entrevistador me disse sem constrangimento que não gostava de negros”, relembra.

“Esse discurso muito direto vai transformando o ambiente e chega ao ponto de um homem negro ser morto em um supermercado naquelas condições”, diz Tenório.

Há esperanças, porém. Este ano, cinco negros (quatro mulheres e um homem) foram eleitos para a Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Em 2016, só havia sido eleito um vereador negro. “Ainda é pouco, mas já é um passo adiante na discussão antirracista. É fruto de uma união das pessoas negras e de brancos que se preocupam com a agenda antirracista”, diz Tenório.

Esse avanço não ocorre sem resistência. Depois da votação de domingo, circulou em grupos de WhatsApp um áudio em que Valter Nagelstein (PSD), candidato derrotado à prefeitura de Porto Alegre, critica o perfil dos vereadores eleitos nos seguintes termos: “Basta a gente ver a composição da Câmara, cinco vereadores do Psol. Muitos deles jovens, negros. Quer dizer, o eco daquele discurso que o Psol fica incutindo na cabeça das pessoas. Pessoas, vereadores esses sem nenhuma tradição política, sem nenhuma experiência, sem nenhum trabalho e com pouquíssima qualificação formal.”

Os cinco vereadores negros eleitos em Porto Alegre são de partidos de esquerda, mas nem todos do Psol, como afirmou Nagelstein, que na campanha buscou o voto bolsonarista. Dois são do Psol, duas do PCdoB e uma do PT. Posteriormente, em entrevista ao G1, Nagelstein disse que não havia preconceito em sua fala, apenas a constatação de “um fato”.

Como diz Jeferson Tenório — que além de escritor é professor de língua e literatura na rede pública em Porto Alegre —, o combate ao racismo ainda tem um longo caminho a percorrer no Rio Grande do Sul.

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