Os 40 anos de independência de Moçambique

Os moçambicanos comemoram hoje o fim do período colonial.

Do Rede Angola

Cada veterano uma causa, a causa era comum, em cada ruga do rosto uma memória e até estas são semelhantes, a mesma motivação e um passado repartido entre guerrilheiros da Frelimo ouvidos pela Lusa a propósito dos 40 anos da independência de Moçambique, assinalados hoje. Os primeiros a sair para o mato foram os pais, depois Félix Nkumi, quando os padres da Missão do Sagrado Coração de Jesus, em Nangololo, província de Cabo Delgado, abandonaram em 1964 a região tornada teatro de guerra, deixando o então jovem moçambicano sem escola para estudar.

“Não consegui sair com os padres, mas consegui localizar os meus pais, e juntei-me a eles na luta de libertação”, relata o antigo combatente da Frelimo, que atravessou em Cabo Delgado os dez anos de guerra colonial e que, depois da independência, serviu no exército contra as forças da Renamo.

“Das lutas que passaram em Moçambique, combati todas”, afirma o ex-militar de Muidumbe, que entrou ainda menino na Frelimo e nela se fez comandante de companhia, depois do treino militar recebido em Cabo Delgado, em Nachingwea, no sul da Tanzânia, e ainda na Rússia, até voltar ao interior do seu país “e acabar com essas guerras”.

Guerra colonial | DR
Guerra colonial | DR

Por seu lado, Maurício Gaspar não se arrepende de nada, de emprestar a sua juventude durante uma década como o guerrilheiro maconde que substituiu o camponês. Contempla o nome de cada comandante inscrito no pórtico da antiga Base Central, no coração do planalto de Mueda, e, 40 anos depois, não tem dúvidas de que o seu trabalho “foi mesmo bem feito, porque o objectivo preconizado tinha sido alcançado”.

O massacre de Mueda, que em 1960 vitimou um número incerto de moçambicanos às mãos das forças coloniais, deu o mote nacionalista para milhares de jovens, muitos deles ainda menores, que se refugiaram no mato e depois aderiram ao movimento de libertação nas bases de retaguarda e formação no sul da Tanzânia, deixando para trás famílias e as machambas (hortas) de que se sustentavam.

“Juntei-me em 1963”, afirma Valentim Ngalonga, recordando o seu papel de arregimentar jovens para a guerrilha, nas bermas das estradas no planalto de Mueda, quando a Frelimo já se consolidava como movimento de resistência anticolonial, a partir de Dar-es-Salam, e se preparava para iniciar, no ano seguinte, uma insurreição em grande escala.

As missões de recrutamento não eram feitas sem riscos, num território sob dominação portuguesa, mas tão grande que a geografia favorecia a causa e “o colono não podia descobrir todos os movimentos”. Para mais numa organização nova e que se movia fora da zona de conforto da administração política e militar.

Também João Vyantenda Guga começou por fazer trabalho de recrutamento para a Frelimo. Tinha menos de 15 anos quando levava cartões, pela calada da noite, a novos membros do movimento, a mando do pai, ambos sobreviventes do massacre de Mueda.

Foi pelo pai que recebeu os primeiros ensinamentos sobre o colonialismo que urgia eliminar e foi também dele que recebeu ordem, em 1964, para abandonar a casa de família e integrar a guerrilha no distrito de Muidumbe.

“O meu pai dizia que os meus colegas jovens já estavam nas zonas baixas a treinar, então tinha de me juntar a eles”, relata João Guga.

Vestido de preto, óculos escuros, Vicente Dabolo traz uma boina e as escarificações rasgadas há muito tempo no rosto a golpes de navalha, identificando a sua tribo de etnia maconde.

O antigo combatente de 80 anos recebeu a Lusa na Base Beira, em Nangade, no norte da província de Cabo Delgado, a primeira que a Frelimo criou no começo da guerra, onde chegou há quase meio século e onde ainda se mantém.

Jovem pastor é punido por ter perdido um animal | Foto Ricardo Rangel

Do colonialismo português recorda o xibalo (trabalhos forçados), “sem pagar nada”, o castigo da palmatória por outros “nadas”, as jornadas de escravatura nas fazendas de sisal.

“Sofremos muito, andávamos sem sapatos, sem camisa”, descreve o antigo guerrilheiro, repetindo o “sofrimento, muito sofrimento” e que conduziu à guerra de libertação.

“Se queríamos ir a outra povoação, tínhamos de ir pelo mato, não podíamos usar as estradas deles [colonos]”, prossegue Valentim Ngalonga, um antigo camponês, como quase todos os ex-guerrilheiros, e que, logo em 1964, integrou um contingente de formação militar ministrado por 25 compatriotas que tinham recebido, por sua vez, treino na Argélia.

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“Não éramos nada, não éramos considerados, portanto cada qual que tivesse filhos, quando se falava de guerra, tinha de se sacrificar, pegar em armas, lutar, morrer ou não, até conseguirmos a libertação”, resume o ex-soldado, cabendo a cada um evitar a todo o custo o fim dos combates até ter a vitória como certa.

Também José Mcolunde se juntou ao movimento de libertação de Moçambique logo no alvor da guerra, porque não queria mais “brincadeiras da dominação portuguesa”. Tinha uma mulher e a ameaça de uma vida interrompida quando ela ainda estava quase por inteiro pela frente

“Não tinha medo porque queria libertar o país, ter coração para vencer aquela máquina”, afirma o ex-guerrilheiro. “Não tinha medo, nada, só tinha o pensamento de adquirir a independência”, insiste. “Não tinha medo”.

 

A aldeia que já foi um quartel e continua a ser Base Beira

Criada em 1964, no começo da guerra da Frelimo contra as forças coloniais, a Base Beira, encostada à fronteira com a Tanzânia, permanece um bastião de memória de um punhado de guerrilheiros moçambicanos, residentes há cinco décadas no local. Após a luta de libertação, que culminou na independência do país de há 40 anos, cinco veteranos macondes mantiveram­-se no primeiro quartel da Frelimo no norte da província de Cabo Delgado, com a sua descendência, subsistindo das machambas (hortas) e algum gado a que dantes se dedicavam, numa actividade interrompida por uma década, quando pegaram em armas para expulsar as forças coloniais portuguesas.

“Não foi fácil”, segundo Lipada Akatipula Namalungo, um homem de idade incerta, recordando a passagem directa da sua condição de camponês em Mueda para guerrilheiro e face a um inimigo superior em número, treino e equipamento. “Foi muito forte a tropa portuguesa”, diz o antigo chefe de pelotão, mas também nunca faltou confiança de que os guerrilheiros iam vencer, sobrando-­lhe em convicção o que podia falhar no resto, além do “rancor” que mantinha desde uma tarde de Junho de 1960, quando viu um número indeterminado de compatriotas massacrados em Mueda pelas forças coloniais. Lipada Namalungo fez a sua formação militar neste mesmo lugar, por onde passaram alguns dos principais dirigentes da Frelimo, o fundador Eduardo Mondlane, pouco antes de ser assassinado em Dar es Salam, e o comandante Samora Machel, futuro Presidente da República.

Frelimo apostava na alfabetização desde 1960 | DR

A aldeia perpetuou­-se como Base Beira, com as suas casas de tijolo em barro e telhados de colmo, tão pobre como pobre é ainda Moçambique, mas que tem como primeiro cartão de visita a escola primária, sinalizando que a prioridade dada à educação pelo partido nas zonas libertadas é para manter. Entre árvores gigantescas que já viram de tudo, vai longe a agitação nacionalista de seis companhias que saiam para as suas missões, mato fora, nas proximidades do rio Rovuma, mas cuja fidelidade se mantém, na bandeira da Frelimo, dominante em toda a localidade de 170 habitantes, e nos símbolos do partido que muitos trazem no vestuário. Afinal foi sob aquela bandeira que todos lutaram para expulsar o colonialismo, a causa única para Vicente Dabola, 80 anos, se ter juntado ao movimento e, à semelhança de quase todos os seus camaradas, largado a machamba.

“Foi aquela emoção de que se estamos sofrendo, então vamos criar a nossa condição”, relata o antigo comandante de companhia e que permanece uma destacada personalidade da Base Beira. A este local apenas se chega a pé, de bicicleta ou motorizada, por um estreito caminho de terra, que cruza um vale denso e acentuado, apesar da simbólica e imponente sinalização, quatro quilómetros atrás, na sede do distrito de Nangade, apontando para o lugar histórico da Frelimo.

Uma vista a 360 graus do monumento de indicação da Base Beira mostra um combatente de arma automática em punho mas não só, numa tosca reconstituição moldada em cimento nem por isso com menos impacto. A inscrição na base, logo abaixo da imagem do guerrilheiro, de “preservar os lugares históricos” e a indicação dos “restos mortais da Base Beira”, memoriza um passado terrível, a que a figuração de um esqueleto humano, na parede lateral do mesmíssimo monumento, confere um alcance sinistro das vidas que aqui se acabaram. Deste lugar, em 1970, as tropas do general português Kaúlza Arriaga montaram peças de artilharia para atingir a Base Beira, no auge da Operação Nó Górdio, contra os aquartelamentos da Frelimo.

 

Ex-combatentes reclamam mais reconhecimento

Quarenta anos depois da luta armada, guerrilheiros da Frelimo consideram que valeu a pena o sacrifício, mas pedem mais desenvolvimento para o país e reconhecimento do seu papel.

FRELIMO
25 September 1964
Daniel Maquinasse at ponte-moc-swe.blogspot.com

Valentim Ngalonga recorda que sentiu as operações que atingiram com grande dano a guerrilha no início da década de 1970, durante a Operação Nó Górdio. Ngalonga diz que a Frelimo também reformulou a sua actuação, mantendo equipas reduzidas de combate “3+3”, em vez de companhias ou pelotões inteiros.

“Em qualquer lugar, atacávamos e o colono achava que éramos muitos e não éramos”, relata o ex-militar, adiantando que cada investida desta natureza intuía uma “vitória nas mãos” e que acabou por se confirmar na proclamação da independência.

O ex-militar considera que o desenvolvimento do país trouxe “coisas novas” que não esperava e agora espera mais ainda, tal como o reconhecimento ao contingente de antigos combatentes que trata por não menos do que “heróis”.

Um destes heróis, Maurício Gaspar diz-se ferido porque “o país está-se a desenvolver, pouco a pouco – não é aquele Moçambique de 1975 -, mas só uma coisa está sendo esquecida, a valorização dos combatentes não é tão assim”.

O progresso “ainda não chega para o povo”, prossegue Lipada Namalungo, mas, ainda assim, mantém-se a derradeira avaliação: “Em 40 anos, fomos felizes”.

 O homem que desmaiou enquanto ouvia Samora Machel

No Centro de Preparação Político-Militar de Nachingwea, Tanzânia, em 1975. Local onde na altura decorriam os julgamentos de um grande número de presos políticos | DR

Em plena viagem triunfal de Samora Machel do Rovuma ao Maputo, Sebastião Jairosse sucumbiu a nove horas de discurso do primeiro líder moçambicano, numa época em que a participação em eventos políticos era compulsiva e paga com o cansaço.

A 12 de Junho de 1975, a escassos 13 dias da celebração da Independência de Moçambique, Samora Machel orientou um longo comício na antiga Vila Pery (actual Chimoio), para agradecer a contribuição da população de Manica, numa das fortes e temidas frentes da guerra colonial, e Sebastião Jairosse estava lá.

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Exploração colonial também empurrou mulheres para a luta armada

Mulheres guerrilheiras da FRELIMO |Arquivo Fundação Mário Soares

A exploração colonial, os maus-tratos e o sentido de causa comum também levou mulheres a abandonar as suas aldeias e famílias e tornarem-se combatentes da luta de libertação em Moçambique, contam duas antigas guerrilheiras do Destacamento Feminino da Frelimo. O objectivo de “expulsar o colono”, segundo Merina Anaiva, era desprovido de género. Afinal, “as mulheres também sentiam a exploração, as mães sofriam, eram batidas na palmatória, iam no xibalo [trabalhos forçados], nas plantações de cana doce, algodão e sisal”.

Em suma, “as mulheres também sentiram e foi isso que as levou a engrossar o movimento”, mesmo que isso fosse algo muito estranho para a época, acabando por ser um tema estruturante das chamadas forças progressistas e que ainda hoje perdura num país reconhecido pela repartição de género nos titulares de cargos públicos.

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Sob a forte densidade do matagal da antiga Base Central da Frelimo, distrito de Muidumbe, província de Cabo Delgado, que dantes a escondia e hoje a preserva, Merina Anaiva e Marcelina Saide apontam para um buraco no solo antes de enfiarem nele. Passaram-se quase cinco décadas desde que aquele abrigo contra os ataques aéreos da aviação portuguesa foi aberto e pouco menos desde que ex-guerrilheiros, homens ou mulheres, o usaram pela última vez.

Vestidas com as suas longas capulanas e lenços coloridos, como as camponesas que eram antes da guerra e voltaram a ser depois dela, as duas veteranas repisam os trilhos da principal base da Frelimo em Cabo Delgado, integradas num grupo de outros antigos combatentes, reconstituindo a sua história desde quase sempre.

“Não houve discriminação, estávamos unidos e fazíamos todos a mesma coisa”, prossegue Merina Anaiva, que, tal como Marcelina Saide, pegou em armas no norte de Moçambique, “para acabar com a exploração” encetada por “um colonialismo que doía muito”.

As famílias acabaram por apoiar a escolha de abdicarem de um percurso predestinado pela tradição e juntarem-se ao movimento de libertação, mais uma vez, porque a causa tocava a todos independentemente do sexo.

Brochura de homenagem a Josina Machel | Arquivo Fundação Mário Soares

As veteranas passaram pela Base Beira, a primeira criada pelo movimento, logo em 1964, junto à fronteira com a Tanzânia, mas também por Muidumbe, Chai e Base Chaimite, distrito de Ancuabe, no coração de um conflito de que foram testemunhas e protagonistas ao longo de uma década.

“Foi um grande trabalho e fazíamos tudo em conjunto”, diz Marcelina Saide, recordando longas caminhadas, a partir do rio Rovuma, a carregar material destinado aos guerrilheiros, às vezes armas pesadas, e participando ela própria em acções de combate.

“Também disparávamos”, assinala a ex-guerrilheira, observando que, muitas vezes, usou não só a sua arma individual como peças de morteiro. “As mulheres também eram corajosas e tinham a determinação para fazer essa guerra”, conclui a sua camarada Merina Anaiva, sentada contra uma árvore, numa típica postura das macondes.

Nem todas as mulheres que aderiram à Frelimo relatam uma integração tão consensual. Marina Pachinuapa, uma das fundadoras do Destacamento Feminino, descreve por exemplo que o primeiro grupo enviado para treino militar na Tanzânia, em 1967, teve a sua entrada bloqueada, porque “temia-se que, quando entrassem as 25 meninas, houvesse confusão”.

A situação terá sido levada pelo fundador da Frelimo Eduardo Mondlane ao próprio então Presidente tanzaniano, Julius Nyerere, com intervenção ainda do comandante militar do movimento, Samora Machel, até que tudo se resolveu e o grupo foi autorizado a entrar em Nachingwea.

“Mesmo assim, houve homens que ficaram muito revoltados, mas nós comportámo-nos de forma exemplar”, relata a antiga guerrilheira que chegou a coronel, mulher do general na reserva Raimundo Pachinuapa, citada na colectânea de testemunhos de combatentes “Memórias da Revolução”.

Ao fim de mais de dez anos na guerrilha, Merina Anaiva e Marcelina Saide deram a sua missão por terminada no dia em que “finalmente a independência estava nas mãos”.

 

Falta esforço do governo para promover igualdade de gênero

Quarenta anos depois da independência, mulheres ainda lutam por direitos | Foto Daniel Maquinasse

Moçambique apresenta progressos na sua legislação sobre os direitos das mulheres, mas falta um maior esforço do governo para a implementação efectiva das políticas existentes e a alocação de mais recursos para esta área, alerta a ONU.

“Houve progressos no que se refere ao direitos das mulheres nos últimos 40 anos (pós-­independência de Portugal), porém ainda há muitos desafios e problemas a resolver nesta matéria em Moçambique”, explica à Lusa Florence Raes, representante da ONU Mulher em Moçambique.

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A independência para os líderes políticos

Samora Machel nos campos | DR

Afonso Dhlakama, Daviz Simango e o ex-presidente Armando Guebuza fazem uma análise dos últimos anos. Guebuza considera justa a impaciência de quem quer “soluções para ontem”, mas considera sucessos no desenvolvimento do país. O líder da Renamo defende que a guerra civil em Moçambique foi justificada pela “traição da independência” por parte da Frelimo, que, se não tivesse sido “arrogante” e “cruel”, o próprio movimento que fundou não existiria. O presidente do MDM, terceira maior força política de Moçambique, acredita que, em 40 anos de independência, o Governo investiu em “máquinas de repreensão”, no lugar de produção, num clima de intolerância favorável a conflitos.

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“País ainda está em fase de transição para uma democracia”

Comemoração da independência | DR

Os escritores João Paulo Borges Coelho, Mia Couto e o académico Lourenço do Rosário falam dos anos que se seguiram à independência. João Paulo Borges Coelho defende que a luta de libertação de Moçambique legitimou em 1975 o poder da Frelimo, mas, quarenta anos depois, o país não é ainda uma democracia e possui uma Constituição desajustada.

Já Lourenço do Rosário considera que alguns quadros da Frelimo mudaram em relação aos valores que defenderam na luta contra o colonialismo português. Mia Couto afirma que, quarenta anos depois da independência, Moçambique vive uma “colonização mental”, considerando urgentes e necessárias ideias que respeitam a realidade e a diversidade cultural do país.

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Cartaz exposto no Centro Cultural Brasil Moçambique, em Maputo | DR
Cartaz exposto no Centro Cultural Brasil Moçambique, em Maputo | Foto Daniel de Andrade Simões
Cartaz exposto no Centro Cultural Brasil Moçambique, em Maputo | Foto João Costa Funcho
Cartaz da Frelimo comemorativo do sexto aniversário do desencadeamento da Luta Armada | Arquivo Fundação Mário Soares

 

 

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