Os desafios de ser uma mulher, negra e ocupar espaços de poder em Curitiba, com Carol Dartora

“Eu fico pensando no dia que as pessoas entrarem na Prefeitura e verem lá os 20% de gente negra, vai ser uma transformação visual nos equipamentos públicos da cidade. Porque eu sei que aí a semente da transformação vai tá lá plantada”.

FONTEPor Luana de Moraes, enviado para o Portal Geledés
Foto: Joka Madruga/Divulgação

Após 327 anos de sua criação, a Câmara Municipal de Curitiba começou a escrever uma nova história. Em 2020, Carol Dartora, 37, professora, dirigente sindical, feminista, foi a primeira negra eleita e uma das mais votadas na capital do Paraná, contabilizando 8.874 votos.

A atual vereadora representa a esperança de um futuro mais justo em um país, que, por ora, está afundado em retrocessos políticos, sociais e econômicos. Mas a tarefa não é nada fácil, afinal, ser mulher, negra e intelectual no Brasil é estar exposta a violências cotidianas. Ser mulher, negra, intelectual e ocupar espaços de poder em uma cidade como Curitiba é estar exposta ao racismo estrutural ainda mais intensificado.

Na entrevista concedida por Carol Dartora, ela nos conta como foi crescer em uma cidade que é conhecida por muitos como Europa brasileira – embora até o século XIX Curitiba ser formada basicamente por descendentes de índios, portugueses e africanos e os negros representarem 40% da população –, como foi o processo de se sentir pertencente de um lugar que ainda hoje invisibiliza a presença e a contribuição dos negros na formação da capital paranaense –  atualmente 34% dos curitibanos e curitibanas se autodeclaram pretos ou pardos –  os ataques  nas redes sociais , as violências institucionais, o poder da representativade e o seu sonho maior de aprovar as cotas raciais para concursos públicos em Curitiba.

Como foi nascer, crescer e se constituir enquanto indivíduo em Curitiba? 

Eu venho de uma família preta, retinta, consciente. Meu avô e minha vó já eram pessoas que atuavam no movimento negro e que traziam consigo essa compreensão da necessidade de lutar contra o racismo. Passaram isso para os meus pais, que também sempre foram muito presentes e atuantes no movimento negro e me deram muitas ferramentas pra conviver com o racismo.

Fui uma criança muito amada, era muito feliz, muito aberta.  Mas, no primeiro momento de ir para o mundo, que é quando a gente sai do seio da família e vai para a escola, aí é aquele baque. Eu cheguei lá e começou: preta, macaca, cabelo de bombril, tudo que você possa imaginar. Lembro de  trocar de  escola constantemente.

Isso foi me constituindo e eu fui deixando de ser aquela criança extremamente alegre para uma adolescente extremamente depressiva. Porque nesta fase entra também a questão de gênero: as amiguinhas começam a namorar, a galera começa a sair e vai para as festinhas e eu me tornei um ser à parte em todos os espaços que estava, me tornei muito tímida. Lembro de no ensino médio ter três amigas, a gente fazia as tarefas juntas, sentava perto. Uma delas fez uma superfesta de 15 anos, convidou a sala inteira. E na sequência, ela trouxe as fotos, mostrou-as pra todo mundo, inclusive para mim. E eu vi que fulano estava na festa e beltrano também, menos eu – e ela era minha amiga. 

Então quando eu cheguei no ensino médio eu já estava com minha personalidade bem transformada. Eu não digo que eu estava destruída na minha autoestima, porque eu tinha uma consciência muito grande, por conta das ferramentas que meus pais me deram e que me fez compreender de que tudo aquilo era um problema social, que o racismo não é um problema meu. Mas eu me introverti, eu pensava, “vocês são tudo uns ignorantes, nem vale a pena mesmo falar com vocês”. E fiquei naquele mundinho muito fechado.

Por conta de tudo isso, tinha uma intolerância com Curitiba, não gostava de ter nascido aqui, sempre falava pra amigos que eu não me sentia parte dessa cidade; me perguntava “por que eu não nasci na Bahia, no Rio de Janeiro, por que eu estou aqui?”, que era justamente esse sentimento de não pertencimento.

Hoje você se sente parte da cidade?

Hoje eu me sinto mais pertencente, eu brinco que parece que eu entendi de repente porque eu nasci aqui. Agora tudo fez sentido.

E por que você acha que você nasceu aqui?

Acho que pra falar um pouco das coisas que precisavam ser ditas, para olhar para cidade desse meu lugar e apontar algumas coisas que precisavam ser apontadas. 

Há muito tempo, muita gente se sentiu representada pelas coisas que eu pontuei. Então, esse sentimento de não pertencer não era só meu, mas de muita gente. E é muito louco porque Curitiba já teve 40% de população negra, mas a cidade é tão hostil, o racismo estrutural aqui é tão pesado, que o povo vai embora.  A cidade também expulsa na forma como ela se organiza: com a gentrificação, a especulação imobiliária, a população negra vai para a região metropolitana, para as periferias não centrais.

Em comparação a outras cidades, como Salvador e Rio de Janeiro, por exemplo, a favela e o asfalto acabam se misturando. No Rio, o pessoal do Leblon é obrigado a cruzar com as pessoas do morro. Não à toa, lá é uma tensão constante. E aqui não, há uma separação territorial muito clara. 

Sim. Mas tem um elemento bem louco aqui: a gente tem periferias centrais, só que aqui tem mecanismos de coibir, de manter essa periferia ali naquele espaço, sem que ela se manifeste. Muita violência policial e uma política higienista mesmo, com o Rafael Greca (atual prefeito de Curitiba) jogando a Guarda Municipal em cima dessas pessoas, para que elas não possam andar e nem transitar pela cidade. 

Eu estava conversando com um padre da Igreja da Rui Barbosa, que atua com o projeto “Mesa Fraterna” junto aos voluntários. O pessoal teve que mudar o local de distribuição de comida, porque as entregas das marmitas eram feitas de frente para a Praça Rui Barbosa e isso incomodou a Prefeitura, pois ali se formavam filas de gente pra pegar a doação. Do mesmo modo, o abrigo aqui da Rua Conselheiro Laurindo, que abrigava em torno de 600 pessoas em situação de rua, fechou por causa da fila que gerava no centro da cidade.

Carol, como é pra você ser a primeira mulher negra eleita em uma cidade como Curitiba?

Logo que eu me elegi eu não consegui perceber a dimensão do que é essa figura “primeira mulher negra eleita”. Eu venho me apropriando da dimensão dessa figura aos poucos.

Especialmente agora em novembro, eu estou absolutamente chocada com a proporção que isso tomou, porque quando eu me elegi pensava: “trouxe um discurso muito necessário e latente, muita gente se sentiu representada pelos discursos que a gente articulou, de não pertencimento com a cidade, dessa invisibilização da população negra, dessa opressão, com a classe trabalhadora, essa segregação socioespacial, dessa coisa de aqui em Curitiba ter bairro de negro e bairro de branco, então o discurso político foi vitorioso”.  

Mas este mês eu tenho recebido cartinha de criança com fotinha minha, dizendo “obrigada por me representar”, “obrigada por ser a primeira mulher negra, quando eu crescer quero ser como você”.  Em uma das escolas que eu visitei, elas colocaram um cartaz com a minha foto depois das professoras pedirem para levarem fotos de mulheres negras que elas admiravam. 

Então isso tá me dando a dimensão que ter sido eleita extrapola o político, é a representação pura e simples. Porque uma criança não está pensando politicamente que a gente precisa ter uma representante progressista lá na Câmara. Ela está vendo uma pessoa que parece com ela, com quem ela se identifica e admira. Então eu estou me apropriando dessa figura aos poucos. 

Ao mesmo tempo em que Curitiba é uma cidade conservadora e racista, ela elegeu você, que é mulher, negra, feminista, petista, professora. Você acha que alguma coisa está mudando? Que está havendo algum avanço, sobretudo em relação às pautas raciais e de gênero?

Eu acho que são várias coisas: uma maior consciência a respeito da necessidade da participação das mulheres na política, uma maior consciência da própria população negra sobre si e sobre as transformações necessárias, uma construção de um pensamento antirracista da população não negra, o retrocesso político – as crises políticas e econômicas, que trouxe esse repensar a situação em que a gente está. 

Durante a campanha eu tinha certo receio, que por ser Curitiba, houvesse uma rejeição ao PT e na rua eu senti o antipetismo se dissolver. A classe trabalhadora percebeu o golpe e percebeu que foi um golpe na população pobre, na população negra, então o antipetismo não foi significativo. Ao contrário, eu consegui dialogar muito bem, expor o projeto que a gente tinha para as pessoas.

 Então, ser eleita aqui se deve a um antipetismo que diminuiu, a um golpe que se explicitou, a pauta antirracista e feminista que se evidenciou; tudo isso somando-se ao fato de eu ser professora, feminista, antirracista e petista.E também quando digo que me apaziguei com Curitiba foi perceber que esse conservadorismo, que esse racismo que aqui é presente, ele não é a única coisa que existe na cidade. Existem também pessoas progressistas, pessoas com pensamentos diferentes, elas estão na cidade e apareceram na hora do voto. 

Só que na outra ponta, você foi ameaçada de morte, sofreu, e ainda continua sofrendo, ataques. Como você lida com essas violências que, pelo visto, são diárias?

Essas violências que vêm pelas redes sociais são muito parecidas com que eu sofria na escola, então para mim elas habitam um campo quase que infantil. Eu olho para aquilo do mesmo jeito que eu olhava para os piás de 9 anos que me chamavam de macaca. Adulto me chamando de macaca está em um lugar tão baixo, que eu não consigo mais me afetar. Mas a gente toma providências jurídicas para mostrar para essas pessoas que elas não estão autorizadas a fazer isso, que isso não é aceitável. 

Os ataques hoje que me afetam são os ataques políticos e institucionais, a violência política de raça e gênero. Estar na Câmara de Vereadores de Curitiba e ver que existem pessoas que foram eleitas por aquelas que estão me chamando de Chimpanzé na internet; conviver com pessoas que votam para que o racismo estrutural continue nos matando, nos negando educação, saúde, isso pra mim, hoje, é muito mais violento. Ver projetos aprovados na Câmara que impõem piores condições de vida, ver essa reprodução da desigualdade dentro de um espaço tão estratégico, isso hoje me afeta mais.

A gente que estuda violência política de gênero sabe que as mulheres sempre saem do espaço político e não querem voltar nunca mais, elas geralmente se afastam mesmo, vão embora da política, porque é um expulsar cotidiano, elas ficam muito fragilizadas. E eu fico pensando que eu tenho que encontrar maneiras de não ficar fragilizada, porque eu preciso tocar os projetos, as pessoas deram o voto de confiança e elas confiam que tem uma voz aqui dentro, então eu preciso estar fortalecida. 

E uma das coisas que pensei nesse sentido é que eu precisava me descolar do que me afeta, entender que quando votam ali na Câmara é político e quando alguém é contrário, entender que ali é um voto contrário no projeto. Então primeiro eu pensei isso, mas depois eu fiz um retorno. Porque no dia em que eu me descolar de fato, no dia em que eu ver pessoas falando que aquilo ali não é importante e eu não sentir nada, então também me esvaziarei da figura política, eu me esvaziarei enquanto representação mesmo. E aí que eu chego à conclusão que vou continuar sofrendo mesmo (risos). 

Eu sou uma mulher preta, eu não consigo me descolar das pautas que eu trago aqui pra dentro, porque elas fazem parte de mim, é sobre mim também. Então, é coletivo, mas eu também sou parte desse coletivo. Então eu trago em mim essas demandas, essas dores, e aí eu sofro mesmo. É a luta histórica que me trouxe aqui, essa luta do movimento negro, muito sangue derramado. (Carol complementa cantando a canção de Estação Primeira de Mangueira e Marquinho Art’Samba) “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado, mulheres, tamoios, mulatos, eu quero um país que não está no retrato” .

Uma das perguntas era justamente como você cuida da sua saúde mental, já que ser mulher, negra e estar na militância é estar exposta a uma série de violências cotidianamente. 

Terapia e espiritualidade. É muita meditação, tem coisas que acontecem que realmente extrapolam a racionalidade, não tem como não considerar a espiritualidade.

Quais são os seus sonhos hoje?

Tenho muitos: sonho que a bancada negra se expanda, sonho que Curitiba saia deste contexto, que a gente consiga ampliar na política antirracista, que a cidade deixe de ser hostil para as pessoas que aqui moram. Mas, hoje, eu posso dizer que meu maior sonho é aprovar o projeto de cotas raciais, pra mim vai ser a maior festa.

Eu fico pensando no dia que as pessoas entrarem na Prefeitura e verem lá os 20% de gente negra, vai ser uma transformação visual nos equipamentos públicos da cidade. Porque eu sei que aí a semente da transformação vai tá lá plantada. A gente viu o que as cotas raciais fizeram nas Universidades: fez uma transformação do que se pesquisava, do que se produzia, do que se escrevia. Então a gente sabe que tem esse poder para mudar as coisas à nossa volta.

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